terça-feira, 17 de fevereiro de 1998

ENTRONCAMENTO



/ NO ENTRONCAMENTO /






ENTRONCAMENTO


É daquelas coisas…
Não há nada que me diga do Entroncamento, talvez por lá estar pouco tempo, e como é conhecida a “terra dos fenómenos” de acordo com relatos populares sobre eventos curiosos, extraordinários ou mesmo fantásticos, o meu fenómeno seja, não recordar nada daquelas coisaspor mais que sejam os episódios ou os factos vários.
A idade não ajuda nada, e os retratos envoltórios das trocas de lugares e outras terras constantemente em ensaios pelas mudanças, não ajuda nenhuma criança a querer recordar lembranças dos primeiros dois Maios. 

É daquelas coisas…  
Não há nada que me diga do Entroncamento… fraco o pensamento, e forte os reconhecimentos do som do vento, que me vai embalando por onde passo… e fica o retrato na memória do tempo, na janela que Deus guarda, para quando chegar o momento, saber que por aqui alguém passa… não ficará em esquecimento.
Deus me faz passar, não me esquece, sabe que tenho de sofrer e sufragar as almas e os seres, espalhar a palavra profetizar no acontecer, e quando acontecer… vem no dia que amanhece, um novo dia o sol aquece, no mar e na Terra ao vento e na sombra, onde quer me encontre tenho de dar, mais do que recebo entregar, dar a minha vida que não é precisa, só menos coisa importante derretida em colheres de pó ardente, servir para os tempos que se aproximam, entregar de bandeja o meu corpo sem que se queira pestanejar, e voltar quando a aurora chegar, renascer das cinzas, amar. 

É destas coisas…
O amor… uma vida inteira à espera de beber o cálice, o sangue que dá a vida, eterna substância mais que a morte, o segredo que não acorda nem a razão descura, nem deixa beber dele a irmandade obscura, ganância duma sequidão, que quer matar a sede à custa da dor alheia e ódio puro, louco incerto, à espera de carregar no botão impresso a loucura da implosão no Universo.
É daquelas coisas…
O Entroncamento, entre a fronteira do pólo norte amar e o pólo sul amor, a passagem pelo glaciar, o fundir eterno amor para nunca deixar de amar.
Mas o maior fenómeno, o calor e o oceano… ainda está para aparecer, tempos do tempo há-de chegar… inumano, quando o sol derreter e o mar passar no Entroncamento.
  












terça-feira, 20 de janeiro de 1998

A BRASEIRA





/NO PESO DA RÉGUA/

De bruços nos braços do fogo,
senti quão ruim desconforto,
era minha queima de inverno,
primeiro amor, dor de inferno.
A BRASEIRA
 




Sentado naquela cadeira tão antiga e o corpo no tampo todo em cima, estava poisado na base; não gostava daquela madeira acre, tinha uns golpes entalhados, decorados com insígnias estranhas… alguém que as desenhara com propósitos fascinantes e algumas manhas, que de certa maneira tinham uma qualquer atracção, mas algo dentro de mim repudiava... eram contrários à natureza que me formara.

Cegamente, a minha atenção vinha a pique descendo mansamente… fixando a coloração laranja de tremor, e crepitando o intenso calor amarelo no coração, o momento em ascensão pelo vermelho da cor.
Sentado naquela cadeira tão antiga… por ser muito alta subida, parecia uma prisão. Não conseguia chegar ao chão, e ainda por cima não sabia andar.
Queria ir para ali… voltar a gatinhar.
Sorria e gritava, mergulhava, nem que fosse de joelhos (se fosse permitido descer do céu da cadeira), caminhar de rastos sobre meus artelhos, sufocando a impotencia de mim.


Todo aquele carvão ardia misturado com algumas cavacas de lenha juntas, largava um fumo indelével que mal se via, e o olharzito buscava aquelas fagulhas, mais ainda a minha mão estendida querendo apanhar aquelas chamas enxutas… de quem ninguém desiste, como se o factor principal fosse o odor natural daquele fogo que me assiste.
Sentado naquela cadeira tão antiga... com uma mão na outra batia. Estava contente, e com outra noutra mão parava.
Com os dedos entrelaçados olhando maravilhado, eu balbuciava uns sons alto, por vezes gritava com sorrisos e novas palmas, e as mãos batiam com força quase de irritação… 


Minha mãe estava ali atarefada, vigiando pelo canto do olho meus gestos, mas ainda não falava e embora saíssem sons ininteligíveis (dialecto real)… eram palavras do meu imaginário que os bebés espertos entoam… /Um dia os crescidos iriam ter um dicionário para aprenderem a conversar com meninos da minha idade./
Sentado em cima daquela cadeira antiga, olhava quando em vez para a minha posição invertida, para ver como ia minha colocação.
Estava a começar a ficar incomodado perigosamente com a minha acção… num chega chega a pouco e pouco /outro tanto/ – devagar fora do banco, queria ir lá para baixo… talvez deixar a cadeira vazia num salto…

Então de mãos estendidas, tentava apanhar as fagulhas libertas das chamas, e quando uma imaginava que era minha, eu dava saltos assentado da maneira que podia, e contente batia palmas e ria. 
De repente... uma faísca como uma linda estrela aparecia, e embora não soubesse o nome dela, eu adorava vê-las à noite pela janela, estendia as mãos para lhes tocar e senti-las… e para a frente me inclinei caindo com os pezinhos nus dentro da braseira.
Espantado com aquela dor imensa, meti as mãos nas brasas para tirar as pernas e os pés da torradeira… na altura, ainda não sabia que o inferno também queima. 

Senti pegarem em mim debaixo dos sovacos e no colo o abraço de mãe, com abraços bem apertados de quem sofre e me quer bem, num enlaço com aperto, dois abraços num coração aceso. 

Que melhor sorte há nos corpos, do que afagar a mente na ternura posição? Direccionar os olhos… sentir o mundo nas mãos.
















quarta-feira, 10 de dezembro de 1997

PETIZ



PENAFIEL
PETIZ






Eu, de calções branquinhos, camisola às risquinhas botas e camisa de colarinhos, tudo alvo naquele caminho, demonstrava segurança de quem tinha olhos do mundo, aquela cumplicidade que havia por ter anjos como amigos e a serenidade de um coração seguro, traduzido por uns olhos meigos e queridos, numa inocência de quem é pequenino.
Quem olhava para mim, seguia meu olhar de criança, levava substância de quem seria amado, transportava uma sina cujo final não tinha…

Num prato o coração a transbordar de correntes que aproximam os seres que amam, e noutro o peso equilibrado dos corações apaixonados que tomam quantidades em doses doseadas de amor…
… e renegam para sempre o ódio, a guerra, a inveja, a sedução, sem lugar para o ócio e a espera, pela negação de contrários que trazem coisas positivas, nas paixões conseguidas, traduzidas nas coisas do mundo banal em pura magia.
Quem olhava para mim pequenino, jamais poderá ser grande, se o minúsculo sentido que dá origem aos fluidos vitalícios do organismo, emprestar cor à vida, o ser grande e voltar a ser pequenino, o pequenino ser enorme na sua pequenez, com amor infindo.
 Quem olhava para mim criança, sentia a paz ao redor como uma auréola anunciada - uma pomba de asas brancas mensageira, que trazia aos sete ventos espalhada a nova guardada, há muito desvendada... infinitamente sem destino, na busca do paraíso.





Se na simplicidade está o significado que clarifica, tudo que nos rodeia na memória dos homens e da humanidade, e o segredo que roubaram da arca da aliança… inviolável, e de menos importância, é o equilíbrio de quem vai e vem, entre o mal e o bem, é o elixir da vida, a fórmula do dia-a-dia, é o que eu trago sempre comigo – amor distribuído como um hipnotizado.

















quarta-feira, 5 de novembro de 1997

ERA UMA VEZ... O DIABO…



Sótão da casa da minha Avó Quitas
Bairro de Marvila, Lisboa.



ERA UMA VEZ... O DIABO






Era uma vez…

Não. Não é um conto para adormecer, criação para embevecer ou uma lenda dos antigos… muito menos o conto duma laracha ou caso de sacerdócio. É um ser diabólico que se intromete na terra dos sonhos, levando todos os anos crianças para o inferno.
O Danado veio visitar-me disfarçado de pesadelo real, atentando a minha pouca idade num pavor indescritível…

Era uma vez… o Diabo…

Tinha olhos terríveis de saguim
que alguma vez vi contra mim… meu corpo estremecia de tal espírito alado em minha vida.
Encarniçado rosto vermelho encanado, não tinha cicatrizes, face deformada ou sinal físico mal formado, mas olhos horríveis de cara desalmada querendo assaltar minha alma.

Fixos os meus de espanto
, os Dele, como aranhas em teia de manto nem sorriso maquiavélico revelava. Eu queria entender tanta desgraça sob invasão da mente desautorizada. Não permiti, fechando o interior deserto e senti o eco do embater Dele intensamente perto.

Era uma vez… o Diabo…

Era um homem, caveira, depois figura. Não era chifrudo nem cauda pontiaguda nem tridente usava... Seu cérebro perverso, procurava, procurava… incomparáveis olhos monstruosos!
Queimavam… terrivelmente fantasmagóricos, olhos esquisitos, mortíferos olhos. Pareceu-me uma eternidade… os séculos… míseros anos sem idade e de repente, percebi que o malvado queria compreender meu passado.
Ouvi a voz do malvado soar nas suas cogitações como eco do meu pensamento.

«Como é que esta débil figura… pode ter olhos mais medonhos… ímpios
mais profundos que o abismo do mundo? Infinitos impossíveis de alcançar na sua estrutura, separados por troços de intocáveis domínios?» 

Por eu ser quem sou… e se sentir inseguro continuava, perguntava e dizia, continuava e repetia, repetia: 

Quem és tu, insignificante criatura de Deus que tens olhos cruéis mais mortais que os meus! Que não consigo entrar por essa porta nem sondar pensamentos teus?
Paraíso do meu Inferno… parecem segredos do céu agora?

Sentia que alguém falava por mim, e eu respondia surpreendentemente assim:

Eu tenho olhos mortais mais cruéis que os teus!
Desiguais os meus têm o amor como escudo, e o poder de Deus contra o mal no mundo. Os teus são luxúria, pecados de usurpação, por quereres tirar o trono em rebelião com outros anjos em fúria.
Foste expulso dos céus para o deserto e condenado ao inferno.
Vai-te antes que… novamente sejas castigado!
E mil vezes enclausurado!

/E não é, que se foi embora o Diabo?/

Nisto, acordei na escuridão do sótão da casa da minha avó Quitas alagado em suor, da febre e de tudo que o pesadelo me tinha causado.
Sabia bem o significado do sonhado, e também do mal que era tão real, mas prefiro dizer que era um pesadelo, porque quem vive tal horror sente que pode ficar sem alma e tornar-se um demente patológico. É inexplicável, mas eu sentia a companhia do meu Anjo da Guarda, por isso voltei adormecer descansado.

Era uma vez… o Diabo…

Não. Não é um conto para adormecer, criação para embevecer ou uma lenda dos antigos…olhe nos olhos dentro do olhar…e verá ilhas, terra e mar, lágrimas de estrelas, olhos meus, mistérios do Universo de Deus, Dom que se tem e não se sabe… e no final surge sempre um... porquê?
Porque na realidade tudo deixa de existir e o que era verdade inventa a lenda, e renasce a fantasia da historia e começa sempre assim...

Era uma vez…
  
















sexta-feira, 3 de outubro de 1997

SONHEI QUE NASCI





SONHEI QUE NASCI


 

É possível sonhar com um ano num lado qualquer sincero? 

Sonhei que nasci num lugar onde só existia inverno.
Ao nascer, eu não queria crescer. 

Grande no sonho, acordado, tristonho, com o coração embaciado, era um acordar acabado de fantasiar, vindo nas batidas das asas, branquinhas penas emprestadas, acabadinhas de chegar. 
Bastava viver noutros mundos a verdade coberta de patamares, onde as crianças falavam e não tinham idades. 

Não era importante a voz ter som, mas só saber voar, por dentro da terra ou do mar… porque o sonho aparecia do lado que era bom. 
Havia magia… sem o não existir, nem precisava do sonhar, nem ter vida, apenas coexistir no amar.














sexta-feira, 5 de setembro de 1997

SONHEI QUE MORRI






SONHEI QUE MORRI
 


 
É possível sonhar com um ano num lado qualquer etéreo?


Sonhei que morri na eternidade do milénio, no tempo enrolado em forma de colher. 
Era uma coisa doce suave, um adormecer nada grave, nada tinha dor, tudo era paz e amor.


Tudo era melhor, não fora a calma... mantos brancos ao meu redor, esvoaçavam como brinquedos da minha alma… tacteavam o meu acordar com um sorriso de prazer, a morte me fazia sonhar e eu queria morrer.
Sempre que morria, meu anjo da guarda me dava asas para fugir… e eu fugia, brincava às escondidas no morrer, e aparecia no voar ao voltar a nascer, sempre a sorrir.














quarta-feira, 6 de agosto de 1997

VIM POR ENGANO





Maternidade Alfredo da Costa, Lisboa.




VIM POR ENGANO






E... o que se vive dormindo, eu sempre consegui vivendo acordado.




Sonhando em vida, pela antecâmara divina vim a correr perdido.
De princípio...?
Vim por engano. não era para ter vindo… humano.
Entre meios por meios indevidos fui trocado. 
Quiseram mudar o lugar para não ser conhecido (talvez demais desvendar o passado é o mesmo que saber do futuro), deram um nome igual e o sangue também era parecido, enfim, fui recolhido.


Purificava minha alma no jejum das coisas terrenas /acompanhava a beleza da natureza/ vivia apenas com o sentido de ser leve na minha transparência, partindo com minhas asas invisíveis para sentir a pureza do mundo como um anjo... dormitando na minha nuvem almofadada e sonhando… sonhando… 



A partir daqui, o real é vivido nos intervalos e a realidade do sonho o tempo acordado de todo o filme da vida.



Voltei... ao princípio de novo comecei. 
Com olhos de criança vi tudo aquilo que sonhei, que havia na imensidão humana outros mundos perdidos, coisas que eram belas doutras partes na lenda, seria desengano?

Era humano apenas no pó da terra, perante o olhar de entes temerosos. 
Sabia que eram poderosos, segredos que em mim encerram, com medo de perderem o domínio que não lhes era, e o significado mãe ventre que tudo gera – senão fora descoberto, era sem pudor o simples amor, maior grandeza da Terra, pecado por ser engano.