domingo, 17 de janeiro de 1999

GARRAFA DE CHOCOLATE




/EM OLIVEIRA DE AZEMEIS/
GARRAFA DE CHOCOLATE



Não sei porquê… guardo na memória a imagem duma torre com um relógio que me faz lembrar o “Clock Tower” presente, torre com uma parede amarela de cimento e areia, pintada de fresco recentemente, fazendo lembrar um edifício alto, estreito e fortificado como uma fortaleza, embora tantos anos passados não saiba se foi sonho ou realidade ou sonho na realidade… /castelos, damas e cavaleiros de armas./

Ruas largas onde se podia andar à vontade cheia de árvores, porque passava um motor com rodas pesadas, uma pasteleira ou uma carroça de carga atulhada, numa outra dimensão numa rua fantasma com um banco sozinho.
Não sei porquê… talvez, porque no sítio onde morava, descia umas escadas de pedra com degraus certos e os muros de lados coloridos bonitos, descendo direitos em ziguezagues na vertical, e ao fundo virando para o passeio da esquerda, eu seguia em frente de mão dada à leitaria da esquina, para beber minha garrafa de chocolate que eu tanto gostava e da impaciência que levava, mal podia esperar o momento.
Não sei porquê… ao sair, lembro-me apenas da rua larga, as mãos quentes de minha mãe, o sol e o sabor fresco do chocolate…
E isto foi realidade, por minha única vontade alterada no tempo, porque agora ao beber outra garrafa de chocolate, recordo o tempo certo na leitaria da rua larga, do tempo antigo que eram tempos do tempo agora moderno, do último dia sempre o primeiro.
Não sei porquê… foram poucos meses passados com a minha idade pequena, muita coisa não deu para recordar, talvez se um dia lá voltar…

Por enquanto, metade é sonhar na realidade doutros sonhos, outra metade é viver no âmago da minha essência, da pureza de meus sentimentos, e outros são inteiros fora de alma, partes incertas de fracas paragens quando me vou daqui embora, e regresso a mim, àquilo que sou, ao meu íntimo como um feto em gestação, ao lugar que mais gosto, à minha posição… ao bater do sentir meu coração.











quarta-feira, 9 de dezembro de 1998

FARINHA AMPARO





/EM ESTARREJA/
FARINHA AMPARO





Há quem se lembre ainda da farinha 33 e tenha provado esta delícia?
Recordo os brindes com uma ansiedade, que mal podia conter desejos ao inventar meus mundos… dava tantos beijos para fabricar amor sem precisar de Deus na Terra, que era eu Zeus, rei estátua na perfeição.
… Havia galinhas que punham ovos e soldadinhos que marchavam e davam tirinhos, camionetas com atrelados e helicópteros que paravam no ar sozinhos… navios que mareavam em cima do tapete do meu quarto como se ondas o tivessem atravessado, havia romances de bonecos, namoro entre homens e mulheres transformados em corações de carne e amor de apaixonados.
Havia a Terra, a lua, o sol e o mar todos com gravidade, suportados por mim e manuseados com muito cuidado para não alterar o estado e a forma como foram criados, senão acabaria o mundo aqui…
Eu não podia interferir nos seus mundos, queria amá-los com paixão os amores que o amor de uma criança ama, com a inocência da idade, porque é puro e tem tudo um pouco de Deus imaculado e sem pecado, ascendentes que nem o homem há-de conseguir obter.
O amor faz mover tudo e só uma criança pode ter todo o amor que há no mundo, ele é um deus profundo e tem todas as estrelas do Universo no coração, porque ele ama tudo em tamanho gigante e não é disperso nem tem a acidez do limão …












segunda-feira, 9 de novembro de 1998

O FUNERAL



/EM GOUVEIA/
O FUNERAL



Dentro de uma pequena igreja… assisti bem pertinho pela primeira vez, tal era a minha curiosidade, como era estar deitado dentro de um caixote bem trajado, fato preto e gravata, mãos cruzadas.
Pareceu-me ver as sobrancelhas tremer, os lábios querendo descerrar… ouvia alguém a gritar, mas o homem que dormia nem sinal de acordar. Ao aproximar meu rosto, o dele me parecia bem vivo, o meu da cor do falecido que o cheiro nauseabundo me causava, e no cérebro o grito, eco repetido – a voz do morto vivo.
Repugnante, confuso, fugia como podia, porque minha conclusão não tem atitude que sirva, com a idade de poucos anos numa mente em carga e olhos raio-X cheios de marcas.
 Se escutar consigo… causa tamanha desconheço, ver e ouvir… dá apenas para fugir.
E nunca mais quero ver assim moribundo, num caixote de madeira vestido naquele sobretudo… tal defunto.








sexta-feira, 9 de outubro de 1998

JARDIM-DE-INFÂNCIA



/EM GOUVEIA/
JARDIM-DE-INFÂNCIA




Pensamentos ficam e outros vão, mas a mente humana de ideias e mistérios é como uma caixinha de surpresas.
Os muitos anos passam, mas quando falamos num sítio, logo vêm à memória imagens de lugares furtivos em recônditos e profundos entraves… que nos parecem estranhos e desconhecidos.
Assim é, igualmente situada numa das encostas da Serra com pedra trabalhada pela natureza, onde correm nascentes de água pura, fauna e flora da montanha…
Ruas estreitas com pedra da calçada numa descida...

Entre outras duas ruas um café com televisão sem cores, uma avenida extensa com espaço quase descampado, e um largo que parecia uma pista de aterragem rodeada de flores.
Em cima, uma igreja com duas torres e uma capela com vista para a vila. Um dos lados cheio de árvores muito altas, do outro, um jardim cheio de plantas e um tapete enorme de relva, e dentro do próprio recinto plantado, um jardim-de-infância.
Lá dentro, os gritos de alegria de crianças como eu, a excitação e o prazer de andar de baloiço, voando com imaginação da realidade, levado nas asas do vento em pleno voo, e naquele momento até se acredita que se levanta como um pássaro de asas gigantes, o mundo não tem chão… e o baloiço parece um avião.
E nos escorregas o trampolim, um trajecto do céu deslizando na pista de areia derrapando pés, ou uma queda desastrada virado ao contrário no areal do chão transformada em cambalhota.
Por ser tão bom viver ao saltar, vai-se logo a correr para repetir… senão houver trambolhão, não é giro de se ver nem gostar ao sentir que é tão bom ser trapalhão.
Em pleno contraste aquele jardim tinha uma imperfeição.
Ali perto, o cemitério de moradias com olhares na espera duma aparição… lugar de algo sinistro, mas não sei se há algo na saída com medo dos papões.
Sei apenas que se ia por uma avenida e na altura se falava, quando se ouvia uma coruja ou um som dum vento mais barulhento, a fuga para baixo dos lençóis, com medo das almas penadas ou até mesmo de fantasmas, porque quando se vive na idade do pavor e da fantasia, qualquer som é um horror e a vida não é vida… é um filme de terror.
Não se deve pisar aquela terra de bichos e aparições naquelas idades…
Senão não é como a terra do meu jardim, sem urnas e tabuletas cruzadas e agoiros de aves curvadas e olhos fixos… suspensa respiração dos aflitos.









sexta-feira, 4 de setembro de 1998

O MATADOURO



VIEIRA DO MINHO
O MATADOURO



 *
O BOI
Perto de minha casa havia um matadouro.
Um boi era içado no ar envolto numas grandes cordas.
Um homem subia umas escadas com uma marreta nas mãos para dar com ela na cabeça do bicho, até o conseguir matar.  
Era aberto ao meio com uma lâmina bem afiada e tiravam-lhe as entranhas fumegantes cheias de odores, por ainda se encontrar quente e de se estar em pleno inverno.
O que aquele animal sofria, só ele conseguia traduzir em urros horríveis, pelos ossos da cabeça esmigalhados, uns olhos loucos de espanto, esbugalhados, querendo saltar das órbitas para fora… sofredores de uma mórbida e lenta agonia.



O PORCO



Da matança do porco, não gostava de assistir pelo barulho ensurdecedor que fazia ao ser espetado o facalhão abaixo do focinho, e consequentemente permanecia num transe hipnotizado… o eco de um grito horrendo não humano, que embora não pronuncie a voz dos homens, entende todas as línguas, e é desumano. 
O gume do aço penetrando o fosso abaixo do garrote, perfurando a veia jugular tirando-lhe o último sopro de ar… porque queria o homem sangrá-lo até à morte? 
Ainda tenta compreender o que não consegue perceber… porque ao dar o último suspiro, ninguém o avisara que era este o seu destino, segundos de inferno num lugar maldito, dum inimigo incerto que toda a vida foi seu amigo. 












segunda-feira, 10 de agosto de 1998

MONCORVO




MONCORVO


De uma vez, numa rua estreita bem esguia, onde havia lojas e uma barbearia… e no lado contrário mais acima uma escola, passando uma espécie de ponte à saída de Moncorvo, lá no fundo doutro lugar naquela terriola, ligação da estrada àquele troço…

Lembro desse arruamento, ténue pensamento da minha pequenina figura numa casa algures de uma senhoria, um almoço de bacalhau desfiado com tomate misturado… com um corte de cabelo à escovinha, e o cuidado do barbeiro com meu sinal no pescoço… para não gotejar sangue grosso e ficar inteiro, sem ferida. 

Penso que era a rua principal, a que tinha mais movimento de pessoas, mais comércio na loja comercial e sem vida mundana… e no seguimento dessa mesma rua, descendo um pouco mais abaixo, como uma partitura, com inclinação não musicada e pouco acentuada, virava à esquerda quem vinha do largo, e também ficava à direita da rua principal, a quem todas vinham desembocar no final. 

Recordo o largo da estrada redonda à volta, de uma parede muito alta e antiga meia-morta, parecida com o morro de um castelo, ou igreja a quem tinham batido com um martelo, e quem vinha de frente naquela vista… sentia sempre que na tal rua afluía, que eu só lembro da primeira vez… sem saber porquê, que nesta vila vivia... de quê, sem querer, não sabia.



















segunda-feira, 6 de julho de 1998

 






/POVOA DE LANHOSO/


AS MINHAS AMIGUINHAS





Eu tinha umas amiguinhas que visitava todas as tardinhas de verão… Com meus sete anos de alta impressão.
Ajudava a limpar as carreirinhas de areia, trazia migalhas de pão que eu espalhava de mão cheia como os pães e as sardinhas do mar, e elas puxavam no ar com unhas e dentes restos de alimentos para as suas tocas, sem pararem um segundo sequer às voltas. 

Todos os dias visitava aquelas criaturinhas, tinha fascínio no que faziam e praticavam, admirava a sua persistência, e elas o hábito da minha presença.
Eu comunicava e elas falavam todas aos milhares, parecia uma central de comunicações pela terra dentro, falando pelos corredores e todos os subterrâneos e altares, dizendo que tinham um amigo com mãos gigantes… e que também sabia fazer milagres dos tempos que eram… como dantes. 

Um dia, pararam.
Coisa que elas não faziam nem um segundo por nada deste mundo, e puseram-se a olhar lá de baixo cá para o alto com suas antenazinhas no ar, a enviar…
De princípio não entendi, mas depois, mentalmente traduzi pelo emissor a onda que saía sensivelmente, como se de um contacto em voz telegrafada, enviasse um pedido de ajuda em letra de carta… queriam que eu colocasse as migalhas nas tocas em vez de elas puxarem cansadas, quase mortas. E como nada custava a um gigante… já noutras alturas resultara, principalmente naquele inverno que mais cedo começara.

E assim, passava horas loucas a cuidar das minhas amigas, a vê-las passear em fila indiana, e eu sempre ali… e elas à espera de mim, todos os dias da semana. 
 Eu adorava o porte daquelas amigas cuidadas, na maneira como elas se movimentavam e me olhavam, e vivia no amor delas como um gigante de tal sorte, por serem as minhas pequeninas… amadas.
Por serem as minhas pequeninas… cuidadas e amadas… eu amava aqueles minúsculos bichinhos, que eram minhas amigas, e todas andavam de mão dada… as minhas bichinhas.

Eu tinha umas amiguinhas que visitava todas as tardinhas de verão… em fileirinha naquelas fininhas patinhas…

E eram as minhas formiguinhas… amadas do coração.