sexta-feira, 9 de abril de 1999

A SERPENTE







(DE SEIA  À SERRA DA ESTRELA ATÉ MANTEIGAS)

A SERPENTE



Descia o vale da serra naquela tarde calma de verão, em pressa moderada. 
Minhas imagens velejando ao vento na velocidade da luz… iam e vinham, voltavam atrás, e chegavam antes de lá chegar, pelo meio paravam... retrocediam ao começo da viagem, mal podia esperar, e já antes a tinha inventado nas fantasias de Manteigas com algumas inclinadas beiras, e eu vinha sempre de Seia. 

Fazia o percurso em dúzias de viagens pelas mais variadas curvas, pelo caminho da estrada, e de repente – atravessada no pavimento alcatroado, com mais de três metros de dimensão, passámos por cima do gigante bicho, que sem querer não era esperado, ficou com a cabeça esmagada, pelas rodas do camião.
Parámos mais à frente, recuámos, fomos ver o animal, mas nada havia a fazer, devia estar a morrer com falta de água, e por estar a delirar nada fez para se desviar… 

Devia estar a sonhar com o mais belo lago, que havia na sua miragem, nos pensamentos de olhos turvos, do calor imenso daquela tarde que criava espelhos no asfalto com imagens mirabolantes, e a temperatura elevada levantava através da estrada de alcatrão, as figuras e histórias que eu sonhava.
Fiquei triste com o acontecimento daquela serpente… 
Era como se faltasse qualquer coisa nas paisagens daquela serra, e tudo que lá estava, eu amava como se fizesse parte da inóspita e acidentada terra… 
Como alguém de família desamparada nos deixasse pelo viver destas silvas, o dia que não pode passar sem a hora marcada, para além da vida e da morte… o destino.















sexta-feira, 5 de março de 1999

REVISTA “AOS QUADRADINHOS”



/EM LEIRIA/

REVISTA “AOS QUADRADINHOS”



Era uma tarde de verão… de calções e sandálias, caminhava com um chupa-chupa na mão com sabor a limões, fazendo sempre o mesmo trajecto, ficando à porta da mesma loja com a intenção de ganhar coragem para surrupiar uma revista do Pato Donald... já que não tinha cinco paus para a comprar. E assim andava há uns dias perdendo essa mesma coragem na hora de agir, adiando... adiando... mas não sei porquê algo me dizia que era hoje... com a idade de cinco anos, iria perpetuar a minha aventura e o meu maior atrevimento para sacar o meu primeiro amor aos quadradinhos.


À porta duma papelaria (sempre a mesma), olhava maravilhado para os livros de banda desenhada pendurados, e como de costume não tinha uma moeda sequer de entrada para levar o que eu tanto consumia com os olhos e a alma para sonhar em cima da cama com os meus  herois da Disney que eu tanto amava e vivia como se fossem reais.


Peguei num, desfolhando as folhas, espreitando o empregado pelo canto do olho, com o balcão cheio de pessoas.
Todo eu tremia por dentro, com um fogo que me consumia.
Não sabia se tinha coragem e talento para fugir… o desejo era tanto ir, mas os pés colados ao chão não queriam seguir viagem, e meu olhar febril, disfarçado dum lado para um e outro, seguiam o funcionário e o livro…

Estava prestes a correr, quando de repente... seu olhar entrou no meu de frente. Senti um tiro cá dentro da fronha e pensei que ia morrer de vergonha… 
Todo a tremer, coloquei a brochura aos quadradinhos no sítio sem ver, de pernas para o ar sob olhar do indivíduo furioso; senti um ardor no miolo e um pingo de mijo saindo pelo escroto. 

Abanou a cabeça, com as mãos nas ancas me desafiando…
Eu entendi com tristeza, sem tirar os olhinhos das bancas e do dono da loja, endireitando os “quadradinhos” colocando no lugar a que eles pertenciam com o pretexto de ganhar tempo e fôlego...
Desta vez mexeu o rosto de cima para baixo, como a dizer que desta vez escapo; e já mais descontraído com outro cliente e um sorriso, convencido do meu arrependimento e da minha cara de anjo...


Foi uma fracção de segundo… ele ficou distraído, e eu arranquei amarrotando o rosto do Tio Patinhas naquele ouro todo a toda a velocidade tal era a força dos meus dedos, que os calcanhares me batiam no rabo e me faziam soltar gazes no meio daquela adrenalina toda.
Como uma seta fui parar à esplanada do jardim, misturando a minha magra figura no meio da multidão que passeavam à sombra das árvores para fugirem do calor que abrasava na cidade de Leiria.
Ainda o ouvi a gritar muito ao longe repetindo "agarra que é ladrão!!!..."mas nunca mais me pôs a vista em cima...
Nem a mim, nem à revista, porque eu já ia em sentido contrário chegando perto de minha casa e ele meio perdido no jardim à minha procura.

É verdade que nunca mais lá passei com medo do dono da loja, e também não tinha necessidade porque havia mais livrarias e mais revistas aos quadradinhos noutros lugares, felizmente...











quarta-feira, 17 de fevereiro de 1999

A MÃO DE DEUS






/EM POVOA DE LANHOSO/
A MÃO DE DEUS



 
Finalmente o sol de verão.
No alto da vila, vivia na quinta de uma senhora “beata” e de uma gata falsa de estimação, que de tempos a tempos ficava estranhamente assanhada, o pêlo eriçado como um ouriço-cacheiro e umas garras de unhas curvas como ameaça, dando saltos e gritos estridentes mal me viam passar à sua caça.
Tinha um curral com porcos, capoeira com galos e galinhas, uma casa de rede com frangos e patos soltos, perus e pombas cheia de aves pequeninas, que mais parecia um zoológico cheio de cabras e borregos e ovelhas pisando a caca, e até um saguim - macaquinho de África e todos os animais domésticos que havia… parecia que vinham desembarcados da arca de Noé.
Eu acompanhava e ajudava maravilhado à alimentação daqueles animais e seguia a senhora para todo o lado… e para a igreja do senhor padre em oração.
À tarde, com outros miúdos da minha idade, me levou um dia à casa do Senhor para aprender todos os actos, rezas e contrições do pastor.
E não é que eu me pus a dizer e a cantar padre nossos, ave-marias e todas as rezas da missa sem ver… nem ninguém me ensinar...?
As pessoas exactas daquele meio, o senhor prior e as senhoras beatas que nos contavam histórias de amar, entre si olhavam com grande admiração e uma adoração de para mim olharem.
Como era possível acontecer?
Alguém tão pequeno e que nem sequer ainda sabia ler, saber todas as palavras de amor do homem que andava em cima do mar…?
A verdade, é que sentia algo meu, belo e inocente como se tivesse Deus dentro do “eu”, da minha mente. Olhava para a natureza como se visse a primeira maravilha do mundo, adorava o entardecer das tardes pelo ouro do sol amarelo e amava a incandescente luz do sol poente raiar, o momento do dia em que a estrela de calor se põe no horizonte e a luz do sol na meia-noite me punha a sonhar…
Eu, adorava aquela terra, e os milagres sonhavam e aconteciam dentro do meu ser como se fora abençoado… o mundo era o meu amor de criança, amar e ser amado.


domingo, 17 de janeiro de 1999

GARRAFA DE CHOCOLATE




/EM OLIVEIRA DE AZEMEIS/
GARRAFA DE CHOCOLATE



Não sei porquê… guardo na memória a imagem duma torre com um relógio que me faz lembrar o “Clock Tower” presente, torre com uma parede amarela de cimento e areia, pintada de fresco recentemente, fazendo lembrar um edifício alto, estreito e fortificado como uma fortaleza, embora tantos anos passados não saiba se foi sonho ou realidade ou sonho na realidade… /castelos, damas e cavaleiros de armas./

Ruas largas onde se podia andar à vontade cheia de árvores, porque passava um motor com rodas pesadas, uma pasteleira ou uma carroça de carga atulhada, numa outra dimensão numa rua fantasma com um banco sozinho.
Não sei porquê… talvez, porque no sítio onde morava, descia umas escadas de pedra com degraus certos e os muros de lados coloridos bonitos, descendo direitos em ziguezagues na vertical, e ao fundo virando para o passeio da esquerda, eu seguia em frente de mão dada à leitaria da esquina, para beber minha garrafa de chocolate que eu tanto gostava e da impaciência que levava, mal podia esperar o momento.
Não sei porquê… ao sair, lembro-me apenas da rua larga, as mãos quentes de minha mãe, o sol e o sabor fresco do chocolate…
E isto foi realidade, por minha única vontade alterada no tempo, porque agora ao beber outra garrafa de chocolate, recordo o tempo certo na leitaria da rua larga, do tempo antigo que eram tempos do tempo agora moderno, do último dia sempre o primeiro.
Não sei porquê… foram poucos meses passados com a minha idade pequena, muita coisa não deu para recordar, talvez se um dia lá voltar…

Por enquanto, metade é sonhar na realidade doutros sonhos, outra metade é viver no âmago da minha essência, da pureza de meus sentimentos, e outros são inteiros fora de alma, partes incertas de fracas paragens quando me vou daqui embora, e regresso a mim, àquilo que sou, ao meu íntimo como um feto em gestação, ao lugar que mais gosto, à minha posição… ao bater do sentir meu coração.











quarta-feira, 9 de dezembro de 1998

FARINHA AMPARO





/EM ESTARREJA/
FARINHA AMPARO





Há quem se lembre ainda da farinha 33 e tenha provado esta delícia?
Recordo os brindes com uma ansiedade, que mal podia conter desejos ao inventar meus mundos… dava tantos beijos para fabricar amor sem precisar de Deus na Terra, que era eu Zeus, rei estátua na perfeição.
… Havia galinhas que punham ovos e soldadinhos que marchavam e davam tirinhos, camionetas com atrelados e helicópteros que paravam no ar sozinhos… navios que mareavam em cima do tapete do meu quarto como se ondas o tivessem atravessado, havia romances de bonecos, namoro entre homens e mulheres transformados em corações de carne e amor de apaixonados.
Havia a Terra, a lua, o sol e o mar todos com gravidade, suportados por mim e manuseados com muito cuidado para não alterar o estado e a forma como foram criados, senão acabaria o mundo aqui…
Eu não podia interferir nos seus mundos, queria amá-los com paixão os amores que o amor de uma criança ama, com a inocência da idade, porque é puro e tem tudo um pouco de Deus imaculado e sem pecado, ascendentes que nem o homem há-de conseguir obter.
O amor faz mover tudo e só uma criança pode ter todo o amor que há no mundo, ele é um deus profundo e tem todas as estrelas do Universo no coração, porque ele ama tudo em tamanho gigante e não é disperso nem tem a acidez do limão …












segunda-feira, 9 de novembro de 1998

O FUNERAL



/EM GOUVEIA/
O FUNERAL



Dentro de uma pequena igreja… assisti bem pertinho pela primeira vez, tal era a minha curiosidade, como era estar deitado dentro de um caixote bem trajado, fato preto e gravata, mãos cruzadas.
Pareceu-me ver as sobrancelhas tremer, os lábios querendo descerrar… ouvia alguém a gritar, mas o homem que dormia nem sinal de acordar. Ao aproximar meu rosto, o dele me parecia bem vivo, o meu da cor do falecido que o cheiro nauseabundo me causava, e no cérebro o grito, eco repetido – a voz do morto vivo.
Repugnante, confuso, fugia como podia, porque minha conclusão não tem atitude que sirva, com a idade de poucos anos numa mente em carga e olhos raio-X cheios de marcas.
 Se escutar consigo… causa tamanha desconheço, ver e ouvir… dá apenas para fugir.
E nunca mais quero ver assim moribundo, num caixote de madeira vestido naquele sobretudo… tal defunto.








sexta-feira, 9 de outubro de 1998

JARDIM-DE-INFÂNCIA



/EM GOUVEIA/
JARDIM-DE-INFÂNCIA




Pensamentos ficam e outros vão, mas a mente humana de ideias e mistérios é como uma caixinha de surpresas.
Os muitos anos passam, mas quando falamos num sítio, logo vêm à memória imagens de lugares furtivos em recônditos e profundos entraves… que nos parecem estranhos e desconhecidos.
Assim é, igualmente situada numa das encostas da Serra com pedra trabalhada pela natureza, onde correm nascentes de água pura, fauna e flora da montanha…
Ruas estreitas com pedra da calçada numa descida...

Entre outras duas ruas um café com televisão sem cores, uma avenida extensa com espaço quase descampado, e um largo que parecia uma pista de aterragem rodeada de flores.
Em cima, uma igreja com duas torres e uma capela com vista para a vila. Um dos lados cheio de árvores muito altas, do outro, um jardim cheio de plantas e um tapete enorme de relva, e dentro do próprio recinto plantado, um jardim-de-infância.
Lá dentro, os gritos de alegria de crianças como eu, a excitação e o prazer de andar de baloiço, voando com imaginação da realidade, levado nas asas do vento em pleno voo, e naquele momento até se acredita que se levanta como um pássaro de asas gigantes, o mundo não tem chão… e o baloiço parece um avião.
E nos escorregas o trampolim, um trajecto do céu deslizando na pista de areia derrapando pés, ou uma queda desastrada virado ao contrário no areal do chão transformada em cambalhota.
Por ser tão bom viver ao saltar, vai-se logo a correr para repetir… senão houver trambolhão, não é giro de se ver nem gostar ao sentir que é tão bom ser trapalhão.
Em pleno contraste aquele jardim tinha uma imperfeição.
Ali perto, o cemitério de moradias com olhares na espera duma aparição… lugar de algo sinistro, mas não sei se há algo na saída com medo dos papões.
Sei apenas que se ia por uma avenida e na altura se falava, quando se ouvia uma coruja ou um som dum vento mais barulhento, a fuga para baixo dos lençóis, com medo das almas penadas ou até mesmo de fantasmas, porque quando se vive na idade do pavor e da fantasia, qualquer som é um horror e a vida não é vida… é um filme de terror.
Não se deve pisar aquela terra de bichos e aparições naquelas idades…
Senão não é como a terra do meu jardim, sem urnas e tabuletas cruzadas e agoiros de aves curvadas e olhos fixos… suspensa respiração dos aflitos.