Sótão da casa da minha Avó Quitas
Bairro de Marvila, Lisboa.
ERA UMA VEZ... O
DIABO…
Era uma vez…
Não. Não é
um conto para adormecer, criação para embevecer ou uma lenda dos antigos… muito menos o
conto duma laracha ou caso de sacerdócio. É um ser diabólico que se intromete na terra dos
sonhos, levando todos os anos crianças para o inferno.
O Danado
veio visitar-me disfarçado de pesadelo real, atentando a minha pouca idade num
pavor indescritível…
Era uma vez… o Diabo…
Tinha olhos terríveis de saguim que alguma vez vi contra mim… meu corpo estremecia de tal
espírito alado em minha vida.
Encarniçado
rosto vermelho encanado, não tinha cicatrizes, face deformada ou sinal
físico mal formado, mas olhos horríveis de cara desalmada querendo assaltar
minha alma.
Fixos os meus de espanto, os Dele, como aranhas em teia de manto nem sorriso
maquiavélico revelava. Eu queria entender tanta desgraça sob invasão da mente
desautorizada. Não permiti, fechando o interior deserto e senti o eco do
embater Dele intensamente perto.
Era uma vez… o Diabo…
Era um
homem, caveira, depois figura. Não era chifrudo nem cauda pontiaguda nem tridente
usava... Seu cérebro perverso, procurava, procurava… incomparáveis olhos
monstruosos!
Queimavam…
terrivelmente fantasmagóricos, olhos esquisitos, mortíferos olhos. Pareceu-me
uma eternidade… os séculos… míseros anos sem idade e de repente,
percebi que o malvado queria compreender meu passado.
Ouvi a voz
do malvado soar nas suas cogitações como eco do meu pensamento.
«Como é que esta débil figura… pode ter olhos mais
medonhos… ímpios mais profundos que o
abismo do mundo? Infinitos impossíveis de alcançar na sua estrutura, separados por
troços de intocáveis domínios?»
Por eu ser
quem sou… e se sentir inseguro continuava, perguntava e dizia, continuava e
repetia, repetia:
Quem és tu, insignificante criatura de Deus que tens olhos cruéis
mais mortais que os meus! Que não consigo entrar
por essa porta nem sondar pensamentos teus?
Paraíso do meu Inferno… parecem segredos do céu agora?
Sentia que
alguém falava por mim, e eu respondia surpreendentemente assim:
Eu tenho
olhos mortais mais cruéis que os teus!
Desiguais os
meus têm o amor como escudo, e o poder de Deus contra o mal no mundo. Os teus são
luxúria, pecados de usurpação, por quereres tirar o trono em rebelião com
outros anjos em fúria.
Foste
expulso dos céus para o deserto e condenado ao inferno.
Vai-te antes
que… novamente sejas castigado!
E mil vezes
enclausurado!
/E não é,
que se foi embora o Diabo?/
Nisto,
acordei na escuridão do sótão da casa da minha avó Quitas alagado em suor, da febre e de tudo que o
pesadelo me tinha causado.
Sabia
bem o
significado do sonhado, e também do mal que era tão real, mas prefiro
dizer que era um pesadelo, porque quem vive tal horror sente que pode
ficar sem alma e tornar-se um demente patológico. É inexplicável, mas eu
sentia a companhia do meu Anjo da Guarda, por isso voltei adormecer
descansado.
Era uma vez… o Diabo…
Não. Não é
um conto para adormecer, criação para embevecer ou uma lenda dos antigos…olhe
nos olhos dentro do olhar…e verá ilhas, terra e mar, lágrimas de
estrelas, olhos meus, mistérios do Universo de Deus, Dom que se
tem e não se sabe… e no final surge sempre um... porquê?
Porque
na realidade tudo deixa de existir e o que era verdade inventa a lenda,
e renasce a fantasia da historia e começa sempre assim...
Era uma vez…