quinta-feira, 6 de abril de 2000

ALFERRAREDE



 
/Em Alferrarede/

ALFERRAREDE




Em plenas férias grandes… subia e descia aquela rua sem saída. Não era muito inclinada quem vinha da rua principal, era atravessada naquela direcção… pela estrada de alcatrão.
Subia e descia aquela rua passando pela porta de minha casa. Sem saída tornava-se  isolada. Passava ali as minhas tardes.
Brincava com uma miúda dessas idades, namorando com a inocência do olhar, correspondido na maneira meiga de falar.
E quando estava sozinho… sentado nas escadinhas do meu cubículo, olhava as estrelas, esses pequeninos emergentes pontinhos embrenhando meu delírio noturno. 
Passava um meteorito do outro lado da Terra e eu sonhava que era uma fada que vinha doutro mundo e me levava, voando junto com ela.
Esvoaçava, e eu sonhava olhar perdido, apenas um… à porta e à janela…  ali ficava perdido sem jeito nenhum.


















segunda-feira, 6 de março de 2000

SOZINHO







/Em Tomar, Colégio Nun'Àlvares/





SOZINHO





Aos 11 anos de idade, no Colégio de Tomar, ouvia os risos que enchiam o pátio de recreio e sofria dessa dor sem nome de sentir a vida muito mais cedo do que os outros sentem.
É certo que lutava para compreender o menino triste, insensível à agitação em torno. Sabia que tinha medo do rumor que ouvia, mas também tinha medo do silêncio que devora.
As árvores dormiam como ilhas perdidas na sombra, e os minutos a passar como asas lançadas no espaço febril da minha insónia.
A solidão acorda tão fundo em meu espírito, que a certeza do vazio que demora, preenchida traz minha tristeza, e logo vem ao meu pensamento que minha liberdade está perdida.






















domingo, 13 de fevereiro de 2000

ALMOÇO NA SERRA




/ EM CASTELO DE PAIVA/

ALMOÇO NA SERRA




Num dos dias na Serra da Freita, para os lados de Castelo de Paiva, acompanhei meu pai na montagem de uma linha, era difícil e perigosa a subida, e a profissão de guarda-fios os heróis daquele dia, numa altura que fazia tremer o interior de qualquer coração. 
O dia continuou, e chegando a hora do almoço, com lenha apanhada no monte, pau grosso, se fez uma bela fogueira, e numa panela preta de ferro ferreira, se fez o melhor cozido da minha vida na Terra. Comeram várias pessoas, e se não era dos ares da serra, era da panela que ainda serviu para além das carnes de porco, boas sopas…

Um dos ajudantes do motorista (meu pai), lhe deu a vontade, e atrás de umas silvas se foi aliviar. E pegando numa pedra parideira para se tentar limpar, eis que manda um grito que fez assustar a serra inteira… 
Meu pai teve de o conduzir ao hospital, porque um lacrau que estava debaixo da pedra de granito lhe fez um “pico”, mesmo no centro do refugo… e o coitado não parava com tanta dor no cujo…

Ele bem sabe que a culpa não foi do cozido, nem do belo apetite, nem sequer do alívio… mas sim da falta de papel e daquela pedra que tinha um doloroso espinho.

Dissera ele mais tarde:

- Maldita a hora que lhe dera ali a vontade de repente!
E
stivera quase a fazê-lo de um penhasco… mas como era muito o frio do vento, receou ficar constipado.
Às pedras nunca mais vai voltar, e muito menos as calças arriar… porque isto de ser picado, ninguém gosta, e muito menos naquelas partes onde ninguém se pode descuidar.




Nunca gostei tanto de sorrir ao comer boa comida, e deitar mão à barriga como uma criança de pião, perdida de tanto rir com o pico do escorpião.














segunda-feira, 17 de janeiro de 2000

A ESPERA


/ Colégio Nun'Àlvares em Tomar/


A ESPERA



 
Alguém sabe o que é sair de casa com 11 primaveras para ir estudar num colégio interno, vivendo mil esperas, ficar enclausurado durante outros cinco anos, viver numa prisão que é o inferno? 

Vivemos o tempo como se fora dos moiros fechados num castelo, alimentados com arroz e porrada… tendo a espada como martelo e a dureza de ser caloiro, andando com uma coroa e os espinhos de um judas mal amado.
Ficamos por nossa conta… sobreviver à sombra de quem é mais forte, sonhamos vir embora a toda a hora à espera de uma qualquer sorte, que nos batam à porta… caramba!
Como uma espécie de lotaria sem engano, noite e dia durante a semana, todo o ano. 

Somos possuídos de uma tal coragem que nós próprios ficamos admirados com tanto sangue frio, uma revolta interior que parece adormecida… produto da violência que nos moldou, um coração gélido e duro mas não insensível, se a parte intocável que há dentro de nós não se quebrar…

Espero a hora do recreio, o fim da aula, a hora de jantar, horas incontáveis, esperas intermináveis, a hora de dormir, sonhar… acordar em casa.









quinta-feira, 9 de dezembro de 1999

RECREIO


/Cinco anos passados no Colégio Nun'Àlvares, Tomar, dos 11 aos 16 anos/




RECREIO














Um cantinho… um encanto de lugar, um agasalho do vento não menos que um abrigo, um retiro com olhar para o céu, o cantinho do nosso refúgio…
As recordações…
Por ser o nosso convento, esconderijo das nossas memórias, das saudades do nosso tempo, das tristezas e alegrias… o cantinho do nosso lugar.
Por ser a protecção dos nossos pensamentos, sem leis que nos prendam ou impeçam de sonhar, por ser um cantinho tão pequeno onde cabem todas as estrelas e água do mar.
Porque não somos fugitivos de nada, precisamos do nosso espaço, pensar nos dias que passam, recolher ao nosso mundo para nos sentirmos livres como o oceano e a Terra no ar.





sexta-feira, 5 de novembro de 1999

COLÉGIO INTERNO


/Cinco anos passados como Interno no Colégio Nun'Àlvares/


COLÉGIO INTERNO
Se transformarmos cinco anos em 60 meses, 1825 dias, 43 mil e 800 horas, 2 milhões e 628 mil minutos, 157 milhões e 680 mil segundos… o nosso tempo tem milhões e embora dele faça parte o milésimo, ocorrem milhentas coisas no segundo do mundo.
Cerca de mil alunos…
Era um mar de espécies e raças vividos com o contacto do dia-a-dia, experiências, histórias, vidas de África e outras ilhas, uma humanidade tão rica e diversificada dentro de uma prisão planetária, com a finalidade de aprenderem a ser homenzinhos num mundo melhor e se tornarem livres.
Mas como era isso possível na actualidade, se no tempo era ditadura, não havia liberdade e o futuro era um facho, uma mão no alto e uma falsa pintura…
Nunca me adaptei, e saudade é coisa que não sei, nem tão pouco repetir se voltasse atrás, renovar a idade, ninguém me convence, mesmo que prometessem que eu ia viver em paz, e voltaria a liberdade de quem sente, como Fernão Mentes Minto.















quinta-feira, 7 de outubro de 1999

LEITÃO






/NA MEALHADA/
LEITÃO


Casa na estrada, estrada nas casas...
Aqui, também morava na via pública, tal e qual a rua de um bairro com casas do lado e outro lado das casas, com uma pequena relva entre elas, e o movimento de carros e motas…
Algumas camionetas não ofereciam perigo, havia o jardim… e a rua era larga dos lados, embora um pouco tortas.
Havia o restaurante do mesmo lado, quando escapava de casa e seguia os carreiros do relvado, ia ver o dono à tardinha, cá fora, assar no espeto o leitãozinho de leite, rodando devagarinho o bichinho com todos os condimentos… besuntado de molhos até ficar tostadinho, deixando o gosto tremendo, do crescer água na boca.
Era muito amigo de meu pai, todos os fins-de-semana lhe dava um bom pedaço de leitão, e à mesa nunca comi coisa tão boa, tão gostosa, com todos os paladares do céu e da Terra, o verdadeiro manjar dos “Neves”, a companhia na família dos leitões.