segunda-feira, 17 de janeiro de 2000

A ESPERA


/ Colégio Nun'Àlvares em Tomar/


A ESPERA



 
Alguém sabe o que é sair de casa com 11 primaveras para ir estudar num colégio interno, vivendo mil esperas, ficar enclausurado durante outros cinco anos, viver numa prisão que é o inferno? 

Vivemos o tempo como se fora dos moiros fechados num castelo, alimentados com arroz e porrada… tendo a espada como martelo e a dureza de ser caloiro, andando com uma coroa e os espinhos de um judas mal amado.
Ficamos por nossa conta… sobreviver à sombra de quem é mais forte, sonhamos vir embora a toda a hora à espera de uma qualquer sorte, que nos batam à porta… caramba!
Como uma espécie de lotaria sem engano, noite e dia durante a semana, todo o ano. 

Somos possuídos de uma tal coragem que nós próprios ficamos admirados com tanto sangue frio, uma revolta interior que parece adormecida… produto da violência que nos moldou, um coração gélido e duro mas não insensível, se a parte intocável que há dentro de nós não se quebrar…

Espero a hora do recreio, o fim da aula, a hora de jantar, horas incontáveis, esperas intermináveis, a hora de dormir, sonhar… acordar em casa.









quinta-feira, 9 de dezembro de 1999

RECREIO


/Cinco anos passados no Colégio Nun'Àlvares, Tomar, dos 11 aos 16 anos/




RECREIO














Um cantinho… um encanto de lugar, um agasalho do vento não menos que um abrigo, um retiro com olhar para o céu, o cantinho do nosso refúgio…
As recordações…
Por ser o nosso convento, esconderijo das nossas memórias, das saudades do nosso tempo, das tristezas e alegrias… o cantinho do nosso lugar.
Por ser a protecção dos nossos pensamentos, sem leis que nos prendam ou impeçam de sonhar, por ser um cantinho tão pequeno onde cabem todas as estrelas e água do mar.
Porque não somos fugitivos de nada, precisamos do nosso espaço, pensar nos dias que passam, recolher ao nosso mundo para nos sentirmos livres como o oceano e a Terra no ar.





sexta-feira, 5 de novembro de 1999

COLÉGIO INTERNO


/Cinco anos passados como Interno no Colégio Nun'Àlvares/


COLÉGIO INTERNO
Se transformarmos cinco anos em 60 meses, 1825 dias, 43 mil e 800 horas, 2 milhões e 628 mil minutos, 157 milhões e 680 mil segundos… o nosso tempo tem milhões e embora dele faça parte o milésimo, ocorrem milhentas coisas no segundo do mundo.
Cerca de mil alunos…
Era um mar de espécies e raças vividos com o contacto do dia-a-dia, experiências, histórias, vidas de África e outras ilhas, uma humanidade tão rica e diversificada dentro de uma prisão planetária, com a finalidade de aprenderem a ser homenzinhos num mundo melhor e se tornarem livres.
Mas como era isso possível na actualidade, se no tempo era ditadura, não havia liberdade e o futuro era um facho, uma mão no alto e uma falsa pintura…
Nunca me adaptei, e saudade é coisa que não sei, nem tão pouco repetir se voltasse atrás, renovar a idade, ninguém me convence, mesmo que prometessem que eu ia viver em paz, e voltaria a liberdade de quem sente, como Fernão Mentes Minto.















quinta-feira, 7 de outubro de 1999

LEITÃO






/NA MEALHADA/
LEITÃO


Casa na estrada, estrada nas casas...
Aqui, também morava na via pública, tal e qual a rua de um bairro com casas do lado e outro lado das casas, com uma pequena relva entre elas, e o movimento de carros e motas…
Algumas camionetas não ofereciam perigo, havia o jardim… e a rua era larga dos lados, embora um pouco tortas.
Havia o restaurante do mesmo lado, quando escapava de casa e seguia os carreiros do relvado, ia ver o dono à tardinha, cá fora, assar no espeto o leitãozinho de leite, rodando devagarinho o bichinho com todos os condimentos… besuntado de molhos até ficar tostadinho, deixando o gosto tremendo, do crescer água na boca.
Era muito amigo de meu pai, todos os fins-de-semana lhe dava um bom pedaço de leitão, e à mesa nunca comi coisa tão boa, tão gostosa, com todos os paladares do céu e da Terra, o verdadeiro manjar dos “Neves”, a companhia na família dos leitões.






sexta-feira, 3 de setembro de 1999

OUVIA AS ÁRVORES FALAR





/NA VILA DE TÁBUA/

OUVIA AS ÁRVORES FALAR






Esse pinhal era extenso, alto e denso, misterioso… 
Todo vedado com arame farpado, parecia um mundo novo ali ao lado.
Quando passava, pelo canto do olho procurava não olhar, mas era impossível resistir. Já antes ouvira as árvores falar e nos meus cinco anos de idade, com quatro e até com três, sempre andei comigo mesmo por sítios que era impossível imaginar…
Sentia protecção de algo que me guardava como anjo de asa.
Não sei se era da minha tenra idade ou da inocência da alma, eu tinha uma vontade para além dos olhos da humanidade, que me faziam caminhar ao encontro de lugares misteriosos e mundos naquele flanco, como esse pinhal.
Tudo me parecia normal, não sendo não era natural… mas eu gostava de ouvir as árvores falar, por isso, entrei… um portãozinho à medida do meu corpo, com a lista do coração e que nunca dera entrada a ninguém, nem presença de existir. 
Aquele lugar já não era um pinhal.
Olhei antes de entrar, para me situar da entrada daquele caminho, entre a minha casa e o interior daquela terra firme, ainda não explorada…
Então embrenhei-me floresta adentro com pouca claridade, raios de sol por entre as folhas, borboletas a esvoaçar reluzindo luz nos meus passos.
E então as árvores continuaram a falar…
Os ramos a dançar e as folhas brincavam ao vento e eu contente com tanta alegria, corria atrás das folhas que voavam, os galhos que me abraçavam rodeado de feixes de flores, os troncos que me transportavam com mil cuidados para não cair… e se aquilo era a beleza, o paraíso, o além do bosque… eu gostava do sítio, era tão divertido. 
E sempre que ali passava, ouvia as árvores falar…
Estavam a chamar uma voz que compreendiam.

Ali existia a eternidade, a perfeição, não havia o morrer nem a mudança de outra árvore, o cair da folha, o raiar de novo dia, mas precisavam de outra árvore para falar… para copiarem os sons da vida, criar ao nascer e sorrir no sonhar para haver mudança na criação, e o tempo não ficar parado. 













sexta-feira, 13 de agosto de 1999

RIO TINTO


/EM ERMESINDE/
RIO TINTO
  


Aquele riacho corria para baixo, era estreito dum lado a outro. O seguimento do leito desaguava a direito, não era torto… pouco largo - não minguava.

Aquele riacho ia por ali abaixo, ninguém o parava, corrente noutro, e doutro lado descendo, para onde? Pensei...
Mas logo soube que não sabia donde, correndo naquele sentido apertado, sei… logo vi que não se atrasava, não se perdia todo, nem era louco.
Aquele riacho fingido, tinha fama de histórico…
Reza a lenda, numa batalha sangrenta, entre o califa e um heróico conde… tingiu de sangue o rio, por saber quem era a falange, corria tingido… mas o nome…?
Emitiu um sapão com voz de maricão timidamente, e logo disse num tom fininho, rápido, delicado instinto – Riooo Tintooo!
Mandei um salto e assustei o sapo que deu um saltinho sem jeito… e fugiu.
Aquele riacho de Ermesinde, conhecido por Rio Tinto, era muito antigo… do tempo do Afonso Henriques que deu foro de couto a mil cento e quarenta e um, aquando da criação do reino com toda a protecção do mundo… 
E não é, que aquele nome do Rio Tinto de Ermesinde...!
Por ser elemento protegido do rei, extinto, quando o sol ali bate a uma certa hora do tempo, o Henriques que é do sul e sua a data da lei, a cor do rio passa a ter sangue azul…   



quinta-feira, 8 de julho de 1999

O JARDIM

 


/EM SEIA com 7 anos de idade/


O JARDIM





A casa onde vivia… modestamente inclinada numa via secundária, recebia em frente a estrada principal que seguia atravessada…
Para a direita a saída, na esquerda a entrada para a vila.
Ao virar da casa pela esquina, no lado direito havia um largo grande de terra direita, ao meio a rosas-dos-ventos indicando os pontos cardeais com a figura de um galo, e no final um muro esguio da minha altura que dava para o estradeiro, e de lá de baixo parecia muito alto. 
No lado direito, também era cercado por um tapamento de pedra e cimento que dava para me sentar.
Ao canto, uma entrada, com uma escadaria pegada ao muro, isolada do lado contrário para se pôr as mãos ao descer…
Dali se avistava um pequeno jardim rodeado de  árvores majestosas com vários caminhos cruzados entre si, como um labirinto, e ao centro uma estátua da cor do marfim.
Estava quase sempre vazio e no Outono completamente deserto…
Únicos indícios de vida, folhas caídas, e as minhas corridas cheias de alegria por ter aquele mundo só para mim.
Era só no Outono à tardinha quando vinha da escola que eu me sentia bem ali…
Ouvia risos como o meu e vozes cheios de segredos juvenis, escondendo-se nos cantos do jardim, enquanto ouviam a contagem dos números num cântico celestial até cem, e eu via tantos meninos como eu sorrindo e brincando comigo também; eram dois mundos, o meu e o deles juntos num só…
De repente, ao parar ofegante no centro do jardim, o menino de pedra naquela estátua, olhava de frente para mim, com umas asas que não voava, olhos tão tristes que até magoava, um jorro de água fina que pela boca ia, uma perna encolhida e outra pousada como se tivesse acabado de chegar, uma mão estendida e outra no descanso do ar…
E as outras crianças que vinham atrás de mim, também pararam, e ao seguir o meu olhar num silêncio profundo bafejando, sentiram a angústia daquele lugar… daquela estátua e daquele garoto, que era rapaz moço… Arcanjo.
Então, um deu a mão, outro pegou, automaticamente outro imitou, eu juntei meu coração, e todos juntos num círculo, fechámos nossa visão, concentrámos nossas mãos naquela estendida que há tanto tempo esperava outra mão amiga.
Quando descerrei minhas pálpebras, meus olhos viram o menino de asas pequeninas ser abraçado por outros meninos… com um sorriso de amor beijando meu sorriso de mão estendida.
Feliz, veio me abraçar, puxando-me na sua corrida para brincarmos à escondidas na companhia de outros meninos, fantasmas... e anjinhos de asas branquinhas.