sexta-feira, 9 de outubro de 1998

JARDIM-DE-INFÂNCIA



/EM GOUVEIA/
JARDIM-DE-INFÂNCIA




Pensamentos ficam e outros vão, mas a mente humana de ideias e mistérios é como uma caixinha de surpresas.
Os muitos anos passam, mas quando falamos num sítio, logo vêm à memória imagens de lugares furtivos em recônditos e profundos entraves… que nos parecem estranhos e desconhecidos.
Assim é, igualmente situada numa das encostas da Serra com pedra trabalhada pela natureza, onde correm nascentes de água pura, fauna e flora da montanha…
Ruas estreitas com pedra da calçada numa descida...

Entre outras duas ruas um café com televisão sem cores, uma avenida extensa com espaço quase descampado, e um largo que parecia uma pista de aterragem rodeada de flores.
Em cima, uma igreja com duas torres e uma capela com vista para a vila. Um dos lados cheio de árvores muito altas, do outro, um jardim cheio de plantas e um tapete enorme de relva, e dentro do próprio recinto plantado, um jardim-de-infância.
Lá dentro, os gritos de alegria de crianças como eu, a excitação e o prazer de andar de baloiço, voando com imaginação da realidade, levado nas asas do vento em pleno voo, e naquele momento até se acredita que se levanta como um pássaro de asas gigantes, o mundo não tem chão… e o baloiço parece um avião.
E nos escorregas o trampolim, um trajecto do céu deslizando na pista de areia derrapando pés, ou uma queda desastrada virado ao contrário no areal do chão transformada em cambalhota.
Por ser tão bom viver ao saltar, vai-se logo a correr para repetir… senão houver trambolhão, não é giro de se ver nem gostar ao sentir que é tão bom ser trapalhão.
Em pleno contraste aquele jardim tinha uma imperfeição.
Ali perto, o cemitério de moradias com olhares na espera duma aparição… lugar de algo sinistro, mas não sei se há algo na saída com medo dos papões.
Sei apenas que se ia por uma avenida e na altura se falava, quando se ouvia uma coruja ou um som dum vento mais barulhento, a fuga para baixo dos lençóis, com medo das almas penadas ou até mesmo de fantasmas, porque quando se vive na idade do pavor e da fantasia, qualquer som é um horror e a vida não é vida… é um filme de terror.
Não se deve pisar aquela terra de bichos e aparições naquelas idades…
Senão não é como a terra do meu jardim, sem urnas e tabuletas cruzadas e agoiros de aves curvadas e olhos fixos… suspensa respiração dos aflitos.









sexta-feira, 4 de setembro de 1998

O MATADOURO



VIEIRA DO MINHO
O MATADOURO



 *
O BOI
Perto de minha casa havia um matadouro.
Um boi era içado no ar envolto numas grandes cordas.
Um homem subia umas escadas com uma marreta nas mãos para dar com ela na cabeça do bicho, até o conseguir matar.  
Era aberto ao meio com uma lâmina bem afiada e tiravam-lhe as entranhas fumegantes cheias de odores, por ainda se encontrar quente e de se estar em pleno inverno.
O que aquele animal sofria, só ele conseguia traduzir em urros horríveis, pelos ossos da cabeça esmigalhados, uns olhos loucos de espanto, esbugalhados, querendo saltar das órbitas para fora… sofredores de uma mórbida e lenta agonia.



O PORCO



Da matança do porco, não gostava de assistir pelo barulho ensurdecedor que fazia ao ser espetado o facalhão abaixo do focinho, e consequentemente permanecia num transe hipnotizado… o eco de um grito horrendo não humano, que embora não pronuncie a voz dos homens, entende todas as línguas, e é desumano. 
O gume do aço penetrando o fosso abaixo do garrote, perfurando a veia jugular tirando-lhe o último sopro de ar… porque queria o homem sangrá-lo até à morte? 
Ainda tenta compreender o que não consegue perceber… porque ao dar o último suspiro, ninguém o avisara que era este o seu destino, segundos de inferno num lugar maldito, dum inimigo incerto que toda a vida foi seu amigo. 












segunda-feira, 10 de agosto de 1998

MONCORVO




MONCORVO


De uma vez, numa rua estreita bem esguia, onde havia lojas e uma barbearia… e no lado contrário mais acima uma escola, passando uma espécie de ponte à saída de Moncorvo, lá no fundo doutro lugar naquela terriola, ligação da estrada àquele troço…

Lembro desse arruamento, ténue pensamento da minha pequenina figura numa casa algures de uma senhoria, um almoço de bacalhau desfiado com tomate misturado… com um corte de cabelo à escovinha, e o cuidado do barbeiro com meu sinal no pescoço… para não gotejar sangue grosso e ficar inteiro, sem ferida. 

Penso que era a rua principal, a que tinha mais movimento de pessoas, mais comércio na loja comercial e sem vida mundana… e no seguimento dessa mesma rua, descendo um pouco mais abaixo, como uma partitura, com inclinação não musicada e pouco acentuada, virava à esquerda quem vinha do largo, e também ficava à direita da rua principal, a quem todas vinham desembocar no final. 

Recordo o largo da estrada redonda à volta, de uma parede muito alta e antiga meia-morta, parecida com o morro de um castelo, ou igreja a quem tinham batido com um martelo, e quem vinha de frente naquela vista… sentia sempre que na tal rua afluía, que eu só lembro da primeira vez… sem saber porquê, que nesta vila vivia... de quê, sem querer, não sabia.



















segunda-feira, 6 de julho de 1998

 






/POVOA DE LANHOSO/


AS MINHAS AMIGUINHAS





Eu tinha umas amiguinhas que visitava todas as tardinhas de verão… Com meus sete anos de alta impressão.
Ajudava a limpar as carreirinhas de areia, trazia migalhas de pão que eu espalhava de mão cheia como os pães e as sardinhas do mar, e elas puxavam no ar com unhas e dentes restos de alimentos para as suas tocas, sem pararem um segundo sequer às voltas. 

Todos os dias visitava aquelas criaturinhas, tinha fascínio no que faziam e praticavam, admirava a sua persistência, e elas o hábito da minha presença.
Eu comunicava e elas falavam todas aos milhares, parecia uma central de comunicações pela terra dentro, falando pelos corredores e todos os subterrâneos e altares, dizendo que tinham um amigo com mãos gigantes… e que também sabia fazer milagres dos tempos que eram… como dantes. 

Um dia, pararam.
Coisa que elas não faziam nem um segundo por nada deste mundo, e puseram-se a olhar lá de baixo cá para o alto com suas antenazinhas no ar, a enviar…
De princípio não entendi, mas depois, mentalmente traduzi pelo emissor a onda que saía sensivelmente, como se de um contacto em voz telegrafada, enviasse um pedido de ajuda em letra de carta… queriam que eu colocasse as migalhas nas tocas em vez de elas puxarem cansadas, quase mortas. E como nada custava a um gigante… já noutras alturas resultara, principalmente naquele inverno que mais cedo começara.

E assim, passava horas loucas a cuidar das minhas amigas, a vê-las passear em fila indiana, e eu sempre ali… e elas à espera de mim, todos os dias da semana. 
 Eu adorava o porte daquelas amigas cuidadas, na maneira como elas se movimentavam e me olhavam, e vivia no amor delas como um gigante de tal sorte, por serem as minhas pequeninas… amadas.
Por serem as minhas pequeninas… cuidadas e amadas… eu amava aqueles minúsculos bichinhos, que eram minhas amigas, e todas andavam de mão dada… as minhas bichinhas.

Eu tinha umas amiguinhas que visitava todas as tardinhas de verão… em fileirinha naquelas fininhas patinhas…

E eram as minhas formiguinhas… amadas do coração.


















segunda-feira, 8 de junho de 1998

A OUTRA PORTA




FOSSA DE ÁGUA

                   
A OUTRA PORTA



 
Difícil?
É criar no mundo
apetecido
o mundo de lá
fusível perdido…

Dificilmente fugindo
 do mundo de dentro,
acordando
no lado de cá...

Esbaforido correndo
 pela primeira porta…
seu nome é ir.

Um dia será voltar.

Depois… partir 
da chegada e viajar…
como se nada houvera
e de corda envolta
pel' outra porta

A outra porta fôra.










segunda-feira, 11 de maio de 1998

FOSSA DE ÁGUA




CONDEIXA
  
FOSSA DE ÁGUA


Caí lá dentro da fossa (4 anos) e quando estava prestes a desaparecer, fui salvo porque alguém tinha aberto a porta nesse exacto momento – a outra porta.

Dei uma espécie de andamento, senti o vácuo e um frio, e o outro pé ao mesmo tempo sem tino, caí direito em sentido, não esbocei nenhum movimento e se tinha senso não dei por nada, não sabia o que me tinha acontecido, não chorei e até achei graça por os olhos deixarem de ver, e o nariz achei tapado, a beber lodo e água choca da poça. 

Foram uns segundos sem respirar, pareceram-me uma eternidade… então vi trombetas que sobressaíam das conchas do mar como um milagre, vi anjos albinos tocar harpa num som celestial, peixes a dançar, um carro submarino sem rodas e a hélice a rodar, puxando um bando de anões que davam saltos engraçados com suas badanas coloridas, e a pequena sereia num trono a ouro dourados, à espera de ser humana um dia. 

Lembro-me que estava a sorrir por ver aqueles bonecos de cabelos bem penteados, rostos coloridos, bota de jogral e penacho de plumas… /estendi o braço, queria me juntar./

Puxaram-me, fiquei no ar cá fora, aborrecido por o meu espírito deserto… no sonho sem sentidos - acabar.











segunda-feira, 13 de abril de 1998

RECORDAÇÕES DAS COISAS







ALMEIRIM

RECORDAÇÕES DAS COISAS


 Pois se lá vivi… foi noutro tempo, de recordações que passaram e em nada de mim ficou gravado, ou porque as imagens não me deixaram impressões dos gostos do passado, ou porque minha memória em formação não tenha captado algo que fosse de meu agrado, a não ser a estrada principal, vislumbre quase imperceptível dum nevoeiro, a percepção da visão e via-se mal…

Movimento lado a lado, o andar sem comunicação, passos no passeio… passos no passa seguido, as costas e as pernas altas de um homem que levava debaixo do braço o jornal comprimido, braço com sacola de uma mulher perdida, a montra cheia de manequins com vestidos que a mulher queria, e o cruzar dos dois na passadeira, logo daquela maneira.

De um lado a volta, do outro a ida, troca de caminhos de ida e volta inteira. E no trajecto repetido, nas dobras as esquinas, as mesmas lojas e um café na avenida. 

Por não ser a estrada principal, a visão normal do pouco movimento, um carro de vez em quando, no outro sentido uma carroça e um cavalo e o condutor com um chicote e uma correia, uma bicicleta pasteleira da 2ª guerra mundial, e na ultrapassagem o tinir da buzina duma lambreta prateada, uma furgoneta descarregando material de caixa aberta para uma loja de electrodomésticos em segunda mão, e por fim... 

Uma criança com olhos de emoção… ao ver da janela da casa este movimento naquela rua, e que ainda não sabia os nomes que havia dar àquelas pessoas e veículos em circulação, a não ser, guardar no coração para poder contar um dia…