quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

VIAGENS DO MEU QUOTIDIANO
















VIAGENS DO MEU QUOTIDIANO



Nasci na cidade de Lisboa, e nos primeiros meses fui viver para Moscavide, onde estive pouco tempo, porque o meu pai era motorista profissional da CNE, hoje EDP, andando na construção de linhas desde a Estremadura até ao Minho. E eu nesta vida até aos 10 anos de idade… e novamente dos 16 aos 18; daí, classificar como sendo estas as “Viagens do meu Quotidiano.”
 














I




SONHEI QUE MORRI
 

Sonhar sem saber o que é viver, é intemporal.
Morrer e ressuscitar ao sonhar, é ser eterno no sonho.




 
É possível sonhar com um ano num lado qualquer etéreo?

Sonhei que morri na eternidade do milénio, no tempo enrolado em forma de colher. 
Era uma coisa doce suave, um adormecer nada grave, nada tinha dor, tudo era paz e amor.

Tudo era melhor, não fora a calma... mantos brancos ao meu redor, esvoaçavam como brinquedos da minha alma… tateavam o meu acordar com um sorriso de prazer, a morte me fazia sonhar e eu queria morrer.
Sempre que morria, meu anjo da guarda me dava asas para fugir… e eu fugia, brincava às escondidas no morrer, e aparecia no voar ao voltar a nascer, sempre a sorrir.





SONHEI QUE NASCI




 

 Viver dentro dum corpo é uma esfera.
Nascer com um grito ou um choro é duro,
porque somos lançados às feras do Mundo,
e não sabemos o que nos espera.





É possível sonhar com um ano num lado qualquer sincero? 
Sonhei que nasci num lugar onde só existia inverno.
Ao nascer, eu não queria crescer. 

Grande no sonho, acordado, tristonho, com o coração embaciado, era um acordar acabado de fantasiar, vindo nas batidas das asas, branquinhas penas emprestadas, acabadinhas de chegar. 
Bastava viver noutros mundos a verdade coberta de patamares, onde as crianças falavam e não tinham idades. 

Não era importante a voz ter som, mas só saber voar, por dentro da terra ou do mar… porque o sonho aparecia do lado que era bom. 
Havia magia… sem o não existir, nem precisava do sonhar, nem ter vida, apenas coexistir no amar.









III


DE MEU IRMÃO

Meu irmão nasceu dois anos antes de mim,
gémeo do nome que eu tenho e faleceu assim
com destino por três meses por doença dele.
Ele passou a ser eu, e eu passei a ser ele.





 

Que missão pode um ser desempenhar neste mundo imenso… Deus chega, é suficiente razão? 
Partir numa tão breve passagem, voltar em tão curto espaço de tempo ou há algo mais verdadeiro… tem explicação? 
Que ser é este…palpita e não cede a existência? 
Porque gosta tanto assim de sentir o tinir que o faz sentir vivo, ou os laços que unem o mesmo espírito como gémeos verdadeiros existentes na mesma pele do pensamento… o que dá força imortal para ser nas duas partes da gente, ou serão dois irmãos parecidos num só mundo dividido… qual deles o mais real? 
Que faz viver entre a noite e o dia solitário, sem claridade nem escuridão, perfeitos na ligação, senão o vazio ou a liberdade do sentir sem ninguém a seu lado…?
Únicos, estão unidos como a composição da rocha, sem declives nem desgaste, incompletos na formação de um sem outro.
Juntos podem sobreviver numa parte fora doutra…
Mas se um cessa, o outro morre, deixam de ser um par, duas almas num corpo…um só envolto.




DE… MEU IRMÃO





Às vezes sonho com ele.

Pressinto o eco pingo de uma gota d’agua, 
lusco-fusco de um fosco baço, 

um pisca-pisca num espelho sem forma definida, 

um treme-treme arco-íris numa alma colorida, 

fantasma da minha fantasia, peão de meus passos.


















V


DE MIM



Maternidade Alfredo da Costa,
Lisboa.



Porque acordo neste envoltório, amando outro corpo
oferecido e não estranho? 
Que antes de ter sido, foi ser o que foi… e sou, 
sobrenome dum irmão germano.

Matéria inocente, me tornei parte aquém de Ódin
estereotipia de mim… 
Sentindo que era, donde sem saber, donde?
Solta quimera por onde o mundo fôra... livre sim.












VI

VIM POR ENGANO








Eo que se vive dormindo, eu sempre consegui vivendo acordado.
Sonhando em vida, pela antecâmara divina vim a correr perdido.
De princípio...?
Vim por engano. não era para ter vindo… humano.
Entre meios por meios indevidos fui trocado. 
Quiseram mudar o lugar para não ser conhecido (talvez demais desvendar o passado é o mesmo que saber do futuro), deram um nome igual e o sangue também era parecido, enfim, fui recolhido.

Purificava minha alma no jejum das coisas terrenas /acompanhava a beleza da natureza/ vivia apenas com o sentido de ser leve na minha transparência, partindo com minhas asas invisíveis para sentir a pureza do mundo como um anjo... dormitando na minha nuvem almofadada e sonhando… sonhando… 

A partir daqui o real é vivido nos intervalos e a realidade do sonho o tempo acordado de todo o filme da vida.

Voltei... ao princípio de novo comecei. 

Com olhos de criança vi tudo aquilo que sonhei, que havia na imensidão humana outros mundos perdidos, coisas que eram belas doutras partes na lenda, seria desengano ou real?
Era humano apenas no pó da terra, perante o olhar de entes temerosos. 
Sabia que eram poderosos, segredos que em mim encerram, com medo de perderem o domínio que não lhes era, e o significado mãe ventre que tudo gera – senão fora descoberto, era sem pudor o simples amor, maior grandeza da Terra, pecado por ser engano.
















Beijarei teus olhos, teus pés,
Beijarei tuas mãos, teu ventre
Te amarei na eternidade até…
Te chamarei mãe para sempre.


VII


DE MINHA MÃE



*



Por entre aconchego e aleitamento de lençóis
senti um dia ao adormecer
beijos que eram doce mel aos caracóis…
Amor que vinha solto de carícias


As ternuras das mãos faziam em mim estremecer…
soltar magicas delícias.


E de lábios meus,
sorrisos vindos da estrela de Belém…?
Sentimentos ternos pairavam na voz dos “eus”


Afecto profundo
linguagem de mãe


Eco do meu mundo.



 *

















VIII


AMOR DE MÃE

Quando era pequenino, minha mãe
falava muitas vezes ao meu coração
entre abraços, carícias e beijos cem
que me faziam sentir o filho mais bem
amado com amor de mãe e dedos na mão.



Filho…
Amor há só um.
Teu pai, eu e tu.
Meu querido…


Sabes donde nasce, porque vem?


- Quem sabe mãezinha… Quem!?


Do outro mundo… só o Eco d’além…
Essa outra Voz que não diz a ninguém,
nem a mim que tenho coração de mãe.


- O amor é belo… e eu mãezinha?


Não penses, não vês?
Natureza, vida, amor, nós três!
Não acreditas, pois então?


- Talvez mãezinha, talvez…
mas conta-me lá outra vez
como é mãezinha, como é?


Amor há só um – de vez.






Miha avó Quitas, meu pai e tio.






IX

ERA UMA VEZ... O DIABO…

Sótão da casa da minha Avó Quitas
Bairro de Marvila, Lisboa.




Era uma vez…
Não. Não é um conto para adormecer, criação para embevecer ou uma lenda dos antigos… muito menos o conto duma laracha ou caso de sacerdócio. É um ser diabólico que se intromete na terra dos sonhos, levando todos os anos crianças para o inferno.
O Danado veio visitar-me disfarçado de pesadelo real, atentando a minha pouca idade num pavor indescritível…

Era uma vez… o Diabo…
Tinha olhos terríveis de saguim que alguma vez vi contra mim… meu corpo estremecia de tal espírito alado em minha vida.
Encarniçado rosto vermelho encanado, não tinha cicatrizes, face deformada ou sinal físico malformado, mas olhos horríveis de cara desalmada querendo assaltar minha alma.

Fixos os meus de espanto, os Dele, como aranhas em teia de manto nem sorriso maquiavélico revelava. Eu queria entender tanta desgraça sob invasão da mente desautorizada. Não permiti, fechando o interior deserto e senti o eco do embater Dele intensamente perto.

Era uma vez… o Diabo…
Era um homem, caveira, depois figura. Não era chifrudo nem cauda pontiaguda nem tridente usava... Seu cérebro perverso, procurava, procurava… incomparáveis olhos monstruosos!
Queimavam… terrivelmente fantasmagóricos, olhos esquisitos, mortíferos olhos. Pareceu-me uma eternidade… os séculos… míseros anos sem idade e de repente, percebi que o malvado queria compreender meu passado.
Ouvi a voz do malvado soar nas suas cogitações como eco do meu pensamento.

(Diabo) 
Como é que esta débil figura… pode ter olhos mais medonhos… ímpios mais profundos que o abismo do mundo? Infinitos impossíveis de alcançar na sua estrutura, separados por troços de intocáveis domínios?

Por eu ser quem sou… e se sentir inseguro continuava, perguntava e dizia, continuava e repetia, repetia: 
(Diabo)  
Quem és tu, insignificante criatura de Deus que tens olhos cruéis mais mortais que os meus! Que não consigo entrar por essa porta nem sondar pensamentos teus? Paraíso do meu Inferno… parecem segredos do céu agora?

Sentia que alguém falava por mim, e eu respondia surpreendentemente assim:
- Eu tenho olhos mortais mais cruéis que os teus!
Desiguais os meus têm o amor como escudo, e o poder de Deus contra o mal no mundo. Os teus são luxúria, pecados de usurpação, por quereres tirar o trono em rebelião com outros anjos em fúria.
Foste expulso dos céus para o deserto e condenado ao inferno.
Vai-te antes que… novamente sejas castigado!
E mil vezes enclausurado!

/E não é, que se foi embora o Diabo? /
Nisto, acordei na escuridão do sótão da casa da minha avó Quitas alagado em suor, da febre e de tudo que o pesadelo me tinha causado.
Sabia bem o significado do sonhado, e também do mal que era tão real, mas prefiro dizer que era um pesadelo, porque quem vive tal horror sente que pode ficar sem alma e tornar-se um demente patológico. É inexplicável, mas eu sentia a companhia do meu Anjo da Guarda, por isso voltei a adormecer descansado.

Era uma vez… o Diabo…
Não. Não é um conto para adormecer, criação para embevecer ou uma lenda dos antigos…olhe nos olhos dentro do olhar…e verá ilhas, terra e mar, lágrimas de estrelas, olhos meus, mistérios do Universo de Deus, Dom que se tem e não se sabe… e no final surge sempre um... porquê?
Porque na realidade tudo deixa de existir e o que era verdade inventa a lenda, e renasce a fantasia da historia e começa sempre assim...



Era uma vez…













X




EU, E OS ESTRANHOS…

Primeiras impressões que me rodeiam:
Os estranhos olhos do mundo.      




A primeira palavra que aprendemos amar sem condicionalismos e por afeto quando somos bebés, são três letras do nosso vocabulário – Mãe.
Enquanto definia as coisas pelos gestos e sem vocabulário, fui sempre uma criança alegre. As outras crianças que se aproximavam de mim, recebiam um olhar de amizade e um sorriso, e os adultos a minha admiração por serem tão altos; por essa razão gostava do colo porque ficava ao mesmo nível dos rostos deles, podendo inspecionar nos seus olhos se eram bons humanos, em quem podia confiar. Senão fossem, ficavam paralisados pelo meu olhar sério e hipnotizante, convidativo, sem saberem porquê… a soltarem-me.
Depois de começar a falar, passei a tentar compreender o Mundo que me rodeia… os animais, as flores, as pessoas, o dia e a noite.
E destas todas só duas coisas me faziam estremecer… os “estranhos” camuflados nas pessoas, e seus olhos malignos como duas lanternas na noite, olhando para mim impassíveis e absortos quando estávamos fora da realidade dos vivos.








XI

O espelho do Universo
Tem três dimensões:
Eu, os estranhos, e os espíritos.


Os olhos, são a telepatia onde reside todo o mistério deste e outros mundos. São eles a linguagem universal dos seres vivos, humanos ou “estranhos.”

Desde a minha meninice que estes segredos me inquietavam.
Vivi temporariamente em casas muito antigas.
Muitas horas acordado para não ser levado por esses olhos medonhos, causando-me febre e um charco de suores frios e arrepiantes.

A escuridão eram as trevas da minha alma. Mas a pouco e pouco, sem saber como, comecei a habituar-me. Depois de adormecer compreendia que ao despertar esses seres não me faziam mal.

Por vezes, levantava-me da cama, apalpando aquela solidão com um sexto sentido, caminhando descalço para que aquela espécie de fantasmas não desse pela minha presença; mas algo me dizia interiormente que essas criaturas sabiam… e que estavam à espera de uma oportunidade.
Logo eu corria temeroso a esconder-me debaixo dos lençóis, como se eles fossem uma espécie de escudo contra males d’outro além.



Assim, pouco a pouco, fui ganhando alguma coragem para deambular no meio daqueles enigmas que no fundo me deixavam uma grande curiosidade., mais forte que o meu pavor.

E foi assim que descobri outras criaturas que faziam um zumbido esquisito ao voarem por cima da minha cama, e que mais tarde apareceram outra vez no quarto onde eu dormia numa casa alugada duma senhora que era médium. Então soube na altura que eram “espíritos”, e sei que eram verdadeiros, porque tenho o dom de os ver.
Se é que isto era um dom ou obra de almas desinquietas que ainda estavam neste mundo e não queriam partir para o outro.

A mim não me compete decidir, o que não me impede de as ver. Depende da casa, se os familiares dessas pessoas faleceram há pouco tempo, ou ali ficaram fechadas no tempo, vá-se lá saber porquê.

Agora imagine, eu estou habituado a dormir com espíritos, e outros mais que são mistérios das trevas, e aos quais já não ligo, como se eles fizessem parte dos meus sonhos.
Como eu consigo adormecer?
Ponho tampões nos ouvidos, porque o que mais incomoda é os zumbidos de insetos gigantes quando esvoaçam por cima de mim, não dormindo de barriga para o ar.
É verdade, não há nada como ver para crer como S. Tomé, mas eu quero mesmo dormir, e nem que troveje eu vou acordar.







XII

SOMBRAS


/VILA DE MOGADOURO,
TRÁS-OS-MONTES/


As trevas do mistério não é mais que o sobressalto da mente comprovar enigmas incríveis, que só são possíveis imortalizá-los na realidade dos seres espirituais, fazendo a ponte entre dois mundos opostos.






Passam ao redor da cama figuras despercebidas que aterrorizam meu olhar de criança e me fazem viver horas de horror antes de adormecer naquele sótão tão antigo… sentia o suor escorrer pelo rosto como se fosse possuído pela febre dos pesadelos.

Formas profundas dentro daquela escuridão, deambulando como fantasmagóricas almas dentro do meu mundo, estremeciam o corpo abanando como se fora uma árvore de folhas caídas, tremendo da cabeça aos pés.

Depois, aquela parede enorme, tinha ao meio uma porta pequenina que não me atrevia abrir, porque o meu temor me dizia que era dali que poderiam advir os meus maiores horrores… sentindo uma enorme vontade de abri-la, faltava-me a coragem.



A sensação de não estar sozinho é demasiado real, porque via nas trevas aberrações que só sabem viver do pavor da escuridão, que se querem acostumar à minha sombra, viver dentro dela como a única forma de andar neste mundo.

À noite, no sótão desta casa, ansiava pela claridade do dia; uma forma de me libertar do medo misterioso que a obscuridade comportava, ansiando pela normalidade diurna deste casarão.



Até que um dia… a minha curiosidade era tanta que venceu o medo. Abri a porta devagar com mil cuidados. Soltando o ferrolho, dei uns passos receosos atrás… e só vi escuridão e uma queima gelada no rosto.

Logo de seguida me arrependi, quis fechar a pequena porta, mas estava paralisado de medo que a deixei ficar aberta. E assim fiquei horas, sentado no chão, tremendo e suando de olhar hipnotizado na sua direção, à espera que de lá saísse algo assustador. Às tantas, pareceu-me ver duas bolinhas amareladas piscando de tantos em tantos segundos. Aí, meu coração acho que parou e deixei de respirar, gritando quando vi minha mãe chegando e me viu naquele propósito; fechou a portinha e disse para nunca mais a abrir.



Assim fiz, porque agora sabia que algo estava ali dentro, e porque ainda mal falava pisquei os olhos à minha mãe tentando explicar o que tinha visto, o que ela achou tanta graça que começou a rir e eu desesperado por ela não perceber.









XIII


PETIZ



/PENAFIEL/




Eu, de calções branquinhos, camisola às risquinhas botas e camisa de colarinhos, tudo alvo naquele caminho, demonstrava segurança de quem tinha olhos do mundo, aquela cumplicidade que havia por ter anjos como amigos e a serenidade de um coração seguro, traduzido por uns olhos meigos e queridos, numa inocência de quem é pequenino.

Quem olhava para mim, seguia meu olhar de criança, levava substância de quem seria amado, transportava uma sina cujo final não tinha…

Num prato o coração a transbordar de correntes que aproximam os seres que amam, e noutro o peso equilibrado dos corações apaixonados que tomam quantidades em doses doseadas de amor…

… e renegam para sempre o ódio, a guerra, a inveja, a sedução, sem lugar para o ócio e a espera, pela negação de contrários que trazem coisas positivas, nas paixões conseguidas, traduzidas nas coisas do mundo banal em pura magia.

Quem olhava para mim pequenino, jamais poderá ser grande, se o minúsculo sentido que dá origem aos fluidos vitalícios do organismo, emprestar cor à vida, o ser grande e voltar a ser pequenino, o pequenino ser enorme na sua pequenez, com amor infindo.

 Quem olhava para mim criança, sentia a paz ao redor como uma auréola anunciada - uma pomba de asas brancas mensageira, que trazia aos sete ventos espalhada a nova guardada, há muito desvendada... infinitamente sem destino, na busca do paraíso.












XIV


A BRASEIRA
 


/NO PESO DA RÉGUA, 2 ANOS DE IDADE/

De bruços nos braços do fogo,
senti quão ruim desconforto,
era minha queima de inverno,
primeiro amor, dor de inferno.








Sentado naquela cadeira tão antiga e o corpo no tampo todo em cima, estava poisado na base; não gostava daquela madeira acre, tinha uns golpes entalhados, decorados com insígnias estranhas… alguém que as desenhara com propósitos fascinantes e algumas manhas, que de certa maneira tinham uma qualquer atração, mas algo dentro de mim repudiava... eram contrários à natureza que me formara.

Cegamente, a minha atenção vinha a pique descendo mansamente… fixando a coloração laranja de tremor, e crepitando o intenso calor amarelo no coração, o momento em ascensão pelo vermelho da cor.
Sentado naquela cadeira tão antiga… por ser muito alta subida, parecia uma prisão. Não conseguia chegar ao chão, e ainda por cima não sabia andar. Queria ir para ali… voltar a gatinhar.

Sorria e gritava, mergulhava, nem que fosse de joelhos (se fosse permitido descer do céu da cadeira), caminhar de rastos sobre meus artelhos, sufocando a impotencia de mim.
Todo aquele carvão ardia misturado com algumas cavacas de lenha juntas, largava um fumo indelével que mal se via, e o olharzito buscava aquelas fagulhas, mais ainda a minha mão estendida querendo apanhar aquelas chamas enxutas… de quem ninguém desiste, como se o fator principal fosse o odor natural daquele fogo que me assiste.
Sentado naquela cadeira tão antiga... com uma mão na outra batia. Estava contente, e com outra noutra mão parava.
Com os dedos entrelaçados olhando maravilhado, eu balbuciava uns sons alto, por vezes gritava com sorrisos e novas palmas, e as mãos batiam com força quase de irritação… 
Minha mãe estava ali atarefada, vigiando pelo canto do olho meus gestos, mas ainda não falava e embora saíssem sons ininteligíveis (dialeto real) … eram palavras do meu imaginário que os bebés espertos entoam… /Um dia os crescidos iriam ter um dicionário para aprenderem a conversar com meninos da minha idade. /
Sentado em cima daquela cadeira antiga, olhava quando em vez para a minha posição invertida, para ver como ia minha colocação.
Estava a começar a ficar incomodado perigosamente com a minha ação… num chega-chega a pouco e pouco /outro tanto/ – devagar fora do banco, queria ir lá para baixo… talvez deixar a cadeira vazia num salto…

Então de mãos estendidas, tentava apanhar as fagulhas libertas das chamas, e quando uma imaginava que era minha, eu dava saltos assentado da maneira que podia, e contente batia palmas e ria. 

De repente... uma faísca como uma linda estrela aparecia, e embora não soubesse o nome dela, eu adorava vê-las à noite pela janela, estendia as mãos para lhes tocar e senti-las… e para a frente me inclinei caindo com os pezinhos nus dentro da braseira.
Espantado com aquela dor imensa, meti as mãos nas brasas para tirar as pernas e os pés da torradeira… na altura, ainda não sabia que o inferno também queima. 

Senti pegarem em mim debaixo dos sovacos e no colo o abraço de mãe, com abraços bem apertados de quem sofre e me quer bem, num enlaço com aperto, dois abraços num coração aceso. 

Que melhor sorte há nos corpos, do que afagar a mente na ternura posição? Direcionar os olhos… sentir o mundo nas mãos.











/ NO ENTRONCAMENTO /



ENTRONCAMENTO


É daquelas coisas…
Não há nada que me diga do Entroncamento, talvez por lá estar pouco tempo, e como é conhecida a “terra dos fenómenos” de acordo com relatos populares sobre eventos curiosos, extraordinários ou mesmo fantásticos, o meu fenómeno seja, não recordar nada daquelas coisaspor mais que sejam os episódios ou os factos vários.
A idade não ajuda nada, e os retratos envoltórios das trocas de lugares e outras terras constantemente em ensaios pelas mudanças, não ajuda nenhuma criança a querer recordar lembranças dos primeiros dois Maios. 

É daquelas coisas…  
Não há nada que me diga do Entroncamento… fraco o pensamento, e forte os reconhecimentos do som do vento, que me vai embalando por onde passo… e fica o retrato na memória do tempo, na janela que Deus guarda, para quando chegar o momento, saber que por aqui alguém passa… não ficará em esquecimento.
Deus me faz passar, não me esquece, sabe que tenho de sofrer e sufragar as almas e os seres, espalhar a palavra profetizar no acontecer, e quando acontecer… vem no dia que amanhece, um novo dia o sol aquece, no mar e na Terra ao vento e na sombra, onde quer me encontre tenho de dar, mais do que recebo entregar, dar a minha vida que não é precisa, só menos coisa importante derretida em colheres de pó ardente, servir para os tempos que se aproximam, entregar de bandeja o meu corpo sem que se queira pestanejar, e voltar quando a aurora chegar, renascer das cinzas, amar. 

É destas coisas…
O amor… uma vida inteira à espera de beber o cálice, o sangue que dá a vida, eterna substância mais que a morte, o segredo que não acorda nem a razão descura, nem deixa beber dele a irmandade obscura, ganância duma sequidão, que quer matar a sede à custa da dor alheia e ódio puro, louco incerto, à espera de carregar no botão impresso a loucura da implosão no Universo.

É daquelas coisas…
O Entroncamento, entre a fronteira do polo norte amar e o polo sul amor, a passagem pelo glaciar, o fundir eterno amor para nunca deixar de amar.
Mas o maior fenómeno, o calor e o oceano… ainda está para aparecer, tempos do tempo há-de chegar… inumano, quando o sol derreter e o mar passar no Entroncamento.
  












/ALMEIRIM/


RECORDAÇÕES DAS COISAS



 Pois se lá vivi… foi noutro tempo, de recordações que passaram e em nada de mim ficou gravado, ou porque as imagens não me deixaram impressões dos gostos do passado, ou porque minha memória em formação não tenha captado algo que fosse de meu agrado, a não ser a estrada principal, vislumbre quase impercetível dum nevoeiro, a perceção da visão e via-se mal…

Movimento lado a lado, o andar sem comunicação, passos no passeio… passos no passa seguido, as costas e as pernas altas de um homem que levava debaixo do braço o jornal comprimido, braço com sacola de uma mulher perdida, a montra cheia de manequins com vestidos que a mulher queria, e o cruzar dos dois na passadeira, logo daquela maneira.

De um lado a volta, do outro a ida, troca de caminhos de ida e volta inteira. E no trajeto repetido, nas dobras as esquinas, as mesmas lojas e um café na avenida. 

Por não ser a estrada principal, a visão normal do pouco movimento, um carro de vez em quando, no outro sentido uma carroça e um cavalo e o condutor com um chicote e uma correia, uma bicicleta pasteleira da 2ª guerra mundial, e na ultrapassagem o tinir da buzina duma lambreta prateada, uma furgoneta descarregando material de caixa aberta para uma loja de eletrodomésticos em segunda mão, e por fim... 

Uma criança com olhos de emoção… ao ver da janela da casa este movimento naquela rua, e que ainda não sabia os nomes que havia dar àquelas pessoas e veículos em circulação, a não ser, guardar no coração para poder contar um dia…













XVII


DE CONDEIXA A COIMBRA



 
/CONDEIXA/



 
Imagine-se… até a mim, hoje, me parece quase impossível, fazer aquele trajeto inúmeras vezes, únicas no sentido, o custar acreditar, sozinho, despreocupado como sempre dentro do destino.
Agora, era viagem duma vila, direto à cidade, com quatro anos o revisor ao lado… apertando minha mão com cuidado, ajudando-me a descer o estrado… 

Como eu adorava andar de autocarro!  
Pela janelinha, olhando sempre para as árvores, as casas, os automóveis na estrada, alguém a passar… e eu a sonhar como se estivesse a ver um documentário, as imagens a passar a noventa ou mesmo a cem quilómetros por hora… num cinema moderno, daqueles dias coloridos com todas as cores da natureza sem preto nem branco.



Aquilo é que eu gostava de ir à janela!  
Depois, os olhos de tanto se focarem, ficavam hipnotizados, parecia um sonho em movimento, o que estava lá fora, e dava a sensação do quieto, teimosamente parado, e eu a sonhar que o meu corpo voava ao passar pelas coisas das imagens, entre a vidraça e a imaginação da velocidade… 

Era um filme real sem playbacks nem imagens gravadas, passado ao vivo.  
Aquilo era demasiado belo, para ser verdade.
Aquilo é que eu gostava de ir à janela!  
Ir à cidade… viajar de autocarro. Ver o meu mundo através da vidraça, em sonhos de asas… mirando tantos corações, pulsando nas cores arco-íris tão bonitos… a inveja do voo das aves em pleno contraste das borboletas floridas, batendo em sintonia na beleza e no mistério da natureza.












CONDEIXA
  

XVIII


FOSSA DE ÁGUA



Caí lá dentro da fossa (4 anos) e quando estava prestes a desaparecer, fui salvo porque alguém tinha aberto a porta nesse exato momento – a outra porta.

Dei uma espécie de andamento, senti o vácuo e um frio, e o outro pé ao mesmo tempo sem tino, caí direito em sentido, não esbocei nenhum movimento e se tinha senso não dei por nada, não sabia o que me tinha acontecido, não chorei e até achei graça por os olhos deixarem de ver, e o nariz achei tapado, a beber lodo e água choca da poça.

Foram uns segundos sem respirar, pareceram-me uma eternidade… então vi trombetas que sobressaíam das conchas do mar como um milagre, vi anjos albinos tocar harpa num som celestial, peixes a dançar, um carro submarino sem rodas e a hélice a rodar, puxando um bando de anões que davam saltos engraçados com suas badanas coloridas, e a pequena sereia num trono a ouro dourados, à espera de ser humana um dia.

Lembro-me que estava a sorrir por ver aqueles bonecos de cabelos bem penteados, rostos coloridos, bota de jogral e penacho de plumas… /estendi o braço, queria me juntar. /

Puxaram-me, fiquei no ar cá fora, aborrecido por o meu espírito deserto… no sonho sem sentidos - acabar.














/POVOA DE LANHOSO/

XIX

AS MINHAS AMIGUINHAS





Eu tinha umas amiguinhas que visitava todas as tardinhas de verão… Com meus sete anos de alta impressão.
Ajudava a limpar as carreirinhas de areia, trazia migalhas de pão que eu espalhava de mão cheia como os pães e as sardinhas do mar, e elas puxavam no ar com unhas e dentes restos de alimentos para as suas tocas, sem pararem um segundo sequer às voltas. 
Todos os dias visitava aquelas criaturinhas, tinha fascínio no que faziam e praticavam, admirava a sua persistência, e elas o hábito da minha presença.
Eu comunicava e elas falavam todas aos milhares, parecia uma central de comunicações pela terra dentro, falando pelos corredores e todos os subterrâneos e altares, dizendo que tinham um amigo com mãos gigantes… e que também sabia fazer milagres dos tempos que eram… como dantes. 

Um dia, pararam.
Coisa que elas não faziam nem um segundo por nada deste mundo, e puseram-se a olhar lá de baixo cá para o alto com suas antenazinhas no ar, a enviar…
De princípio não entendi, mas depois, mentalmente traduzi pelo emissor a onda que saía sensivelmente, como se de um contacto em voz telegrafada, enviasse um pedido de ajuda em letra de carta… queriam que eu colocasse as migalhas nas tocas em vez de elas puxarem cansadas, quase mortas. E como nada custava a um gigante… já noutras alturas resultara, principalmente naquele inverno que mais cedo começara.
E assim, passava horas loucas a cuidar das minhas amigas, a vê-las passear em fila indiana, e eu sempre ali… e elas à espera de mim, todos os dias da semana. 

 Eu adorava o porte daquelas amigas cuidadas, na maneira como elas se movimentavam e me olhavam, e vivia no amor delas como um gigante de tal sorte, por serem as minhas pequeninas… amadas.
Por serem as minhas pequeninas… cuidadas e amadas… eu amava aqueles minúsculos bichinhos, que eram minhas amigas, e todas andavam de mão dada… as minhas bichinhas.
Eu tinha umas amiguinhas que visitava todas as tardinhas de verão… em fileirinha naquelas fininhas patinhas…
E eram as minhas formiguinhas… amadas do coração.


 









MONCORVO



De uma vez, numa rua estreita bem esguia, onde havia lojas e uma barbearia… e no lado contrário mais acima uma escola, passando uma espécie de ponte à saída de Moncorvo, lá no fundo doutro lugar naquela terriola, ligação da estrada àquele troço…

Lembro desse arruamento, ténue pensamento da minha pequenina figura numa casa algures de uma senhoria, um almoço de bacalhau desfiado com tomate misturado… com um corte de cabelo à escovinha, e o cuidado do barbeiro com meu sinal no pescoço… para não gotejar sangue grosso e ficar inteiro, sem ferida. 

Penso que era a rua principal, a que tinha mais movimento de pessoas, mais comércio na loja comercial e sem vida mundana… e no seguimento dessa mesma rua, descendo um pouco mais abaixo, como uma partitura, com inclinação não musicada e pouco acentuada, virava à esquerda quem vinha do largo, e também ficava à direita da rua principal, a quem todas vinham desembocar no final. 

Recordo o largo da estrada redonda à volta, de uma parede muito alta e antiga meia-morta, parecida com o morro de um castelo, ou igreja a quem tinham batido com um martelo, e quem vinha de frente naquela vista… sentia sempre que na tal rua afluía, que eu só lembro da primeira vez… sem saber porquê, que nesta vila vivia... de quê, sem querer, não sabia. 





/EM GOUVEIA/







JARDIM-DE-INFÂNCIA





Pensamentos ficam e outros vão, mas a mente humana de ideias e mistérios é como uma caixinha de surpresas.
Os muitos anos passam, mas quando falamos num sítio, logo vêm à memória imagens de lugares furtivos em recônditos e profundos entraves… que nos parecem estranhos e desconhecidos.
Assim é igualmente situada numa das encostas da Serra com pedra trabalhada pela natureza, onde correm nascentes de água pura, fauna e flora da montanha…
Ruas estreitas com pedra da calçada numa descida...

Entre outras duas ruas um café com televisão sem cores, uma avenida extensa com espaço quase descampado, e um largo que parecia uma pista de aterragem rodeada de flores.
Em cima, uma igreja com duas torres e uma capela com vista para a vila. Um dos lados cheio de árvores muito altas, do outro, um jardim cheio de plantas e um tapete enorme de relva, e dentro do próprio recinto plantado, um jardim-de-infância.

Lá dentro, os gritos de alegria de crianças como eu, a excitação e o prazer de andar de baloiço, voando com imaginação da realidade, levado nas asas do vento em pleno voo, e naquele momento até se acredita que se levanta como um pássaro de asas gigantes, o mundo não tem chão… e o baloiço parece um avião.
E nos escorregas o trampolim, um trajeto do céu deslizando na pista de areia derrapando pés, ou uma queda desastrada virada ao contrário no areal do chão transformada em cambalhota.
Por ser tão bom viver ao saltar, vai-se logo a correr para repetir… senão houver trambolhão, não é giro de se ver nem gostar ao sentir que é tão bom ser trapalhão.

Em pleno contraste aquele jardim tinha uma imperfeição.
Ali perto, o cemitério de moradias com olhares na espera duma aparição… lugar de algo sinistro, mas não sei se há algo na saída com medo dos papões.
Sei apenas que se ia por uma avenida e na altura se falava, quando se ouvia uma coruja ou um som dum vento mais barulhento, a fuga para baixo dos lençóis, com medo das almas penadas ou até mesmo de fantasmas, porque quando se vive na idade do pavor e da fantasia, qualquer som é um horror e a vida não é vida… é um filme de terror.
Não se deve pisar aquela terra de bichos e aparições naquelas idades…
Senão não é como a terra do meu jardim, sem urnas e tabuletas cruzadas e agoiros de aves curvadas e olhos fixos… suspensa respiração dos aflitos.







XXIV


/EM GOUVEIA/
O FUNERAL




Dentro de uma pequena igreja… assisti bem pertinho pela primeira vez, tal era a minha curiosidade, como era estar deitado dentro de um caixote bem-trajado, fato preto e gravata, mãos cruzadas.
Pareceu-me ver as sobrancelhas tremer, os lábios querendo descerrar… ouvia alguém a gritar, mas o homem que dormia nem sinal de acordar. Ao aproximar meu rosto, o dele me parecia bem vivo, o meu da cor do falecido que o cheiro nauseabundo me causava, e no cérebro o grito, eco repetido – a voz do morto vivo.
Repugnante, confuso, fugia como podia, porque minha conclusão não tem atitude que sirva, com a idade de poucos anos numa mente em carga e olhos raio-X cheios de marcas.
 Se escutar consigo… causa tamanha desconheço, ver e ouvir… dá apenas para fugir.
E nunca mais quero ver assim moribundo, num caixote de madeira vestido naquele sobretudo… tal defunto.









/EM ESTARREJA/







FARINHA AMPARO

 

Há quem se lembre ainda da farinha 33 e tenha provado esta delícia?
Recordo os brindes com uma ansiedade, que mal podia conter desejos ao inventar meus mundos… dava tantos beijos para fabricar amor sem precisar de Deus na Terra, que era eu Zeus, rei estátua na perfeição.


… Havia galinhas que punham ovos e soldadinhos que marchavam e davam tirinhos, camionetas com atrelados e helicópteros que paravam no ar sozinhos… navios que mareavam em cima do tapete do meu quarto como se ondas o tivessem atravessado, havia romances de bonecos, namoro entre homens e mulheres transformados em corações de carne e amor de apaixonados.

Havia a Terra, a lua, o sol e o mar todos com gravidade, suportados por mim e manuseados com muito cuidado para não alterar o estado e a forma como foram criados, senão acabaria o mundo aqui…

Eu não podia interferir nos seus mundos, queria amá-los com paixão os amores que o amor de uma criança ama, com a inocência da idade, porque é puro e tem tudo um pouco de Deus imaculado e sem pecado, ascendentes que nem o homem há-de conseguir obter.
O amor faz mover tudo e só uma criança pode ter todo o amor que há no mundo, ele é um Deus profundo e tem todas as estrelas do Universo no coração, porque ele ama tudo em tamanho gigante e não é disperso nem tem a acidez do limão …












/EM OLIVEIRA DE AZEMÉIS/







GARRAFA DE CHOCOLATE





Não sei porquê… guardo na memória a imagem duma torre com um relógio que me faz lembrar o “Clock Tower” presente, torre com uma parede amarela de cimento e areia, pintada de fresco recentemente, fazendo lembrar um edifício alto, estreito e fortificado como uma fortaleza, embora tantos anos passados não saiba se foi sonho ou realidade ou sonho na realidade… /castelos, damas e cavaleiros de armas./
Ruas largas onde se podia andar à vontade cheia de árvores, porque passava um motor com rodas pesadas, uma pasteleira ou uma carroça de carga atulhada, numa outra dimensão numa rua fantasma com um banco sozinho.

Não sei porquê… talvez, porque no sítio onde morava, descia umas escadas de pedra com degraus certos e os muros de lados coloridos bonitos, descendo direitos em ziguezagues na vertical, e ao fundo virando para o passeio da esquerda, eu seguia em frente de mão dada à leitaria da esquina, para beber minha garrafa de chocolate que eu tanto gostava e da impaciência que levava, mal podia esperar o momento.

Não sei porquê… ao sair, lembro-me apenas da rua larga, as mãos quentes de minha mãe, o sol e o sabor fresco do chocolate…
E isto foi realidade, por minha única vontade alterada no tempo, porque agora ao beber outra garrafa de chocolate, recordo o tempo certo na leitaria da rua larga, do tempo antigo que eram tempos do tempo agora moderno, do último dia sempre o primeiro.

Não sei porquê… foram poucos meses passados com a minha idade pequena, muita coisa não deu para recordar, talvez se um dia lá voltar…

Por enquanto, metade é sonhar na realidade doutros sonhos, outra metade é viver no âmago da minha essência, da pureza de meus sentimentos, e outros são inteiros fora de alma, partes incertas de fracas paragens quando me vou daqui embora, e regresso a mim, àquilo que sou, ao meu íntimo como um feto em gestação, ao lugar que mais gosto, à minha posição… ao bater do sentir meu coração.











/EM POVOA DE LANHOSO/





A MÃO DE DEUS




 
Finalmente o sol de verão.
No alto da vila, vivia na quinta de uma senhora “beata” e de uma gata falsa de estimação, que de tempos a tempos ficava estranhamente assanhada, o pêlo eriçado como um ouriço-cacheiro e umas garras de unhas curvas como ameaça, dando saltos e gritos estridentes mal me viam passar à sua caça.
Tinha um curral com porcos, capoeira com galos e galinhas, uma casa de rede com frangos e patos soltos, perus e pombas cheias de aves pequeninas, que mais parecia um zoológico cheio de cabras e borregos e ovelhas pisando a caca, e até um saguim - macaquinho de África e todos os animais domésticos que havia… parecia que vinham desembarcados da arca de Noé.

Eu acompanhava e ajudava maravilhado à alimentação daqueles animais e seguia a senhora para todo o lado… e para a igreja do senhor padre em oração.



À tarde, com outros miúdos da minha idade, me levou um dia à casa do Senhor para aprender todos os atos, rezas e contrições do pastor.
E não é que eu me pus a dizer e a cantar padre nossos, ave-marias e todas as rezas da missa sem ver… nem ninguém me ensinar...?
As pessoas exatas daquele meio, o senhor prior e as senhoras beatas que nos contavam histórias de amar, entre si olhavam com grande admiração e uma adoração de para mim olharem.

Como era possível acontecer…?
Alguém tão pequeno e que nem sequer ainda sabia ler, saber todas as palavras de amor do homem que andava em cima do mar…?
A verdade, é que sentia algo meu, belo e inocente como se tivesse Deus dentro do “eu”, da minha mente. Olhava para a natureza como se visse a primeira maravilha do mundo, adorava o entardecer das tardes pelo ouro do sol amarelo e amava a incandescente luz do sol poente raiar, o momento do dia em que a estrela de calor se põe no horizonte e a luz da lua na meia-noite me punha a sonhar…

Eu, adorava aquela terra, e os milagres sonhavam e aconteciam dentro do meu ser como se fora abençoado… o mundo era o meu amor de criança, amar e ser amado.









/EM LEIRIA/






REVISTA “AOS QUADRADINHOS”





Era uma tarde de verão… de calções e sandálias, caminhava com um chupa-chupa na mão com sabor a limões, fazendo sempre o mesmo trajeto, ficando à porta da mesma loja com a intenção de ganhar coragem para surripiar uma revista do Pato Donald... já que não tinha cinco paus para a comprar. E assim andava há uns dias perdendo essa mesma coragem na hora de agir, adiando... adiando... mas não sei porquê algo me dizia que era hoje... com a idade de cinco anos, iria perpetuar a minha aventura e o meu maior atrevimento para sacar o meu primeiro amor aos quadradinhos.

À porta duma papelaria (sempre a mesma), olhava maravilhado para os livros de banda desenhada pendurados, e como de costume não tinha uma moeda sequer de entrada para levar o que eu tanto consumia com os olhos e a alma para sonhar em cima da cama com os meus  herois da Disney que eu tanto amava e vivia como se fossem reais.

Peguei num, desfolhando as folhas, espreitando o empregado pelo canto do olho, com o balcão cheio de pessoas.
Todo eu tremia por dentro, com um fogo que me consumia.
Não sabia se tinha coragem e talento para fugir… o desejo era tanto ir, mas os pés colados ao chão não queriam seguir viagem, e meu olhar febril, disfarçado dum lado para um e outro, seguiam o funcionário e o livro…

Estava prestes a correr, quando de repente... seu olhar entrou no meu de frente. Senti um tiro cá dentro da fronha e pensei que ia morrer de vergonha… 
Todo a tremer, coloquei a brochura aos quadradinhos no sítio sem ver, de pernas para o ar sob olhar do indivíduo furioso; senti um ardor no miolo e um pingo de mijo saindo pelo escroto. 
Abanou a cabeça, com as mãos nas ancas me desafiando…
Eu entendi com tristeza, sem tirar os olhinhos das bancas e do dono da loja, endireitando os “quadradinhos” colocando no lugar a que eles pertenciam com o pretexto de ganhar tempo e fôlego...
Desta vez mexeu o rosto de cima para baixo, como a dizer que desta vez escapo; e já mais descontraído com outro cliente e um sorriso, convencido do meu arrependimento e da minha cara de anjo...


Foi uma fração de segundo…


Ele ficou distraído, e eu arranquei amarrotando o rosto do Tio Patinhas naquele ouro todo a toda a velocidade tal era a força dos meus dedos, que os calcanhares me batiam no rabo e me faziam soltar gazes no meio daquela adrenalina toda.
Como uma seta fui parar à esplanada do jardim, misturando a minha magra figura no meio da multidão que passeavam à sombra das árvores para fugirem do calor que abrasava na cidade de Leiria.
Ainda o ouvi a gritar muito ao longe repetindo "agarra que é ladrão!!!..."mas nunca mais me pôs a vista em cima... 

 Nem a mim, nem à revista, porque eu já ia em sentido contrário chegando perto de minha casa e ele meio perdido no jardim à minha procura.
É verdade que nunca mais lá passei com medo do dono da loja, e também não tinha necessidade porque havia mais livrarias e mais revistas aos quadradinhos noutros lugares, felizmente...






                                                                    Vieira do Miho



VIEIRA DO MINHO









 *

O BOI




Perto de minha casa havia um matadouro.
Um boi era içado no ar envolto numas grandes cordas.
Um homem subia umas escadas com uma marreta nas mãos para dar com ela na cabeça do bicho, até o conseguir matar.  
Era aberto ao meio com uma lâmina bem afiada e tiravam-lhe as entranhas fumegantes cheias de odores, por ainda se encontrar quente e de se estar em pleno inverno.
O que aquele animal sofria, só ele conseguia traduzir em urros horríveis, pelos ossos da cabeça esmigalhados, uns olhos loucos de espanto, esbugalhados, querendo saltar das órbitas para fora… sofredores de uma mórbida e lenta agonia.





VIEIRA DO MINHO



O MATADOURO



 *
O PORCO




Da matança do porco, não gostava de assistir pelo barulho ensurdecedor que fazia ao ser espetado o facalhão abaixo do focinho, e consequentemente permanecia num transe hipnotizado… o eco de um grito horrendo não humano, que embora não pronuncie a voz dos homens, entende todas as línguas, e é desumano. 
O gume do aço penetrando o fosso abaixo do garrote, perfurando a veia jugular tirando-lhe o último sopro de ar… porque queria o homem sangrá-lo até à morte? 
Ainda tenta compreender o que não consegue perceber… porque ao dar o último suspiro, ninguém o avisara que era este o seu destino, segundos de inferno num lugar maldito, dum inimigo incerto que toda a vida foi seu amigo. 















/SERRA DA ESTRELA/



A SERPENTE






Descia o vale da serra naquela tarde calma de verão, em pressa moderada. 
Minhas imagens velejando ao vento na velocidade da luz… iam e vinham, voltavam atrás, e chegavam antes de lá chegar, pelo meio paravam... retrocediam ao começo da viagem, mal podia esperar, e já antes a tinha inventado nas fantasias de Manteigas com algumas inclinadas beiras, e eu vinha sempre de Seia.

Fazia o percurso em dúzias de viagens pelas mais variadas curvas, pelo caminho da estrada, e de repente – atravessada no pavimento alcatroado, com mais de três metros de dimensão, passámos por cima do gigante bicho, que sem querer não era esperado, ficou com a cabeça esmagada, pelas rodas do camião.


Parámos mais à frente, recuámos, fomos ver o animal, mas nada havia a fazer, devia estar a morrer com falta de água, e por estar a delirar nada fez para se desviar…
Devia estar a sonhar com o mais belo lago, que havia na sua miragem, nos pensamentos de olhos turvos, do calor imenso daquela tarde que criava espelhos no asfalto com imagens mirabolantes, e a temperatura elevada levantava através da estrada de alcatrão, as figuras e histórias que eu sonhava…

Fiquei triste com o acontecimento daquela serpente… 
Era como se faltasse qualquer coisa nas paisagens daquela serra, e tudo que lá estava, eu amava como se fizesse parte da inóspita e acidentada terra… 
Como alguém de família desamparada nos deixasse pelo viver destas silvas, o dia que não pode passar sem a hora marcada, para além da vida e da morte… o destino
 







/DE SEIA A MANTEIGAS/


SERRA DA ESTRELA





Me dava a sensação de um pequeno planeta dentro de outro, como se tivesse embatido na Terra, espalhando as enormes rochas e cavando fundos vales por entre montanhas majestosas e imponentes, e vertentes com alturas incomensuráveis…
Seres que ali viveram enormes, gigantes daqueles planaltos, destruídos pelo desgaste que os mundos atingem, aquando fora de órbita saem do seu próprio sistema.

Ao nosso planeta acontecerá o mesmo fenómeno, ao dar a volta anual sobre si mesmo, saindo a pouco e pouco do nosso sistema solar, a gravidade será sugada e será grave para todos nós…
Até lá, que outros planetas sejam descobertos e povoados no universo de raça humana.
Outras raças se fundam para a inteligência renascer no cosmos como ciência da vida, e a sobrevivência dos seres no mundo ainda que não seja posta em causa, a energia que há na Terra seja uma fonte de novas esperanças.
Uma imitação de novos mundos que hão-de vir, gerar novos filhos e misturar novas raças, para Deus prevalecer e o amor não conhecer fronteiras que o impeçam de habitar novas alamedas e esquinas do futuro traídos pela fé.











/DE SEIA A MANTEIGAS/




MANTEIGAS



 
Em Manteigas, na janela do meu castelo cercado de montanhas mágicas, príncipe do reino encantado no mais lindo sonho de criança, sonhava que o infinito cujo teto o meu dedo alcança, vivia na poesia da noite em versos de fantasia eternamente prisioneiro do olhar, o Universo de pernas pró ar, brincando com as estrelas na palma da minha mão.
Quando regressava ao entardecer de volta a Seia, atravessando a Serra, murmúrios de alma voavam através do vento, de encontro ao chamamento pelas vozes do firmamento, profundo reino do meu ser… mundo oco adormecido.



/EM SEIA COM 6 ANOS/



XXXII


O JARDIM





A casa onde vivia… modestamente inclinada numa via secundária, recebia em frente a estrada principal que seguia atravessada…
Para a direita a saída, na esquerda a entrada para a vila.
Ao virar da casa pela esquina, no lado direito havia um largo grande de terra direita, ao meio a rosas-dos-ventos indicando os pontos cardeais com a figura de um galo, e no final um muro esguio da minha altura que dava para o estradeiro, e de lá de baixo parecia muito alto. 
No lado direito, também era cercado por um tapamento de pedra e cimento que dava para me sentar.
Ao canto, uma entrada, com uma escadaria pegada ao muro, isolada do lado contrário para se pôr as mãos ao descer…
Dali se avistava um pequeno jardim rodeado de árvores majestosas com vários caminhos cruzados entre si, como um labirinto, e ao centro uma estátua da cor do marfim.
Estava quase sempre vazio e no Outono completamente deserto…
Únicos indícios de vida, folhas caídas, e as minhas corridas cheias de alegria por ter aquele mundo só para mim.
Era só no Outono à tardinha quando vinha da escola que eu me sentia bem ali…
Ouvia risos como o meu e vozes cheios de segredos juvenis, escondendo-se nos cantos do jardim, enquanto ouviam a contagem dos números num cântico celestial até cem, e eu via tantos meninos como eu sorrindo e brincando comigo também; eram dois mundos, o meu e o deles juntos num só…
De repente, ao parar ofegante no centro do jardim, o menino de pedra naquela estátua, olhava de frente para mim, com umas asas que não voava, olhos tão tristes que até magoava, um jorro de água fina que pela boca ia, uma perna encolhida e outra pousada como se tivesse acabado de chegar, uma mão estendida e outra no descanso do ar…
E as outras crianças que vinham atrás de mim, também pararam, e ao seguir o meu olhar num silêncio profundo bafejando, sentiram a angústia daquele lugar… daquela estátua e daquele garoto, que era rapaz moço… Arcanjo.
Então, um deu a mão, outro pegou, automaticamente outro imitou, eu juntei meu coração, e todos juntos num círculo, fechámos nossa visão, concentrámos nossas mãos naquela estendida que há tanto tempo esperava outra mão amiga.
Quando descerrei minhas pálpebras, meus olhos viram o menino de asas pequeninas ser abraçado por outros meninos… com um sorriso de amor beijando meu sorriso de mão estendida.
Feliz, veio me abraçar, puxando-me na sua corrida para brincarmos à escondidas na companhia de outros meninos, fantasmas... e anjinhos de asas branquinhas.










/EM ERMESINDE/



RIO TINTO
  



Aquele riacho corria para baixo, era estreito dum lado a outro. O seguimento do leito desaguava a direito, não era torto… pouco largo - não minguava.

Aquele riacho ia por ali abaixo, ninguém o parava, corrente noutro, e doutro lado descendo, para onde? Pensei...
Mas logo soube que não sabia donde, correndo naquele sentido apertado, sei… logo vi que não se atrasava, não se perdia todo, nem era louco.

Aquele riacho fingido, tinha fama de histórico…
Reza a lenda, numa batalha sangrenta, entre o califa e um heroico conde… tingiu de sangue o rio, por saber quem era a falange, corria tingido… mas o nome…?
Emitiu um sapão com voz de maricão timidamente, e logo disse num tom fininho, rápido, delicado instinto – Riooo Tintooo!
Mandei um salto e assustei o sapo que deu um saltinho sem jeito… e fugiu.

Aquele riacho de Ermesinde, conhecido por Rio Tinto, era muito antigo… do tempo do Afonso Henriques que deu foro de couto a mil cento e quarenta e um, aquando da criação do reino com toda a proteção do mundo… 

E não é, que aquele nome do Rio Tinto de Ermesinde...!?
Por ser elemento protegido do rei, extinto, quando o sol ali bate a uma certa hora do tempo, o Henriques que é do sul e sua a data da lei, a cor do rio passa a ter sangue azul…   












/NA VILA DE TÁBUA/






OUVIA AS ÁRVORES FALAR




Esse pinhal era extenso, alto e denso, misterioso… 
Todo vedado com arame farpado, parecia um mundo novo ali ao lado.
Quando passava, pelo canto do olho procurava não olhar, mas era impossível resistir. Já antes ouvira as árvores falar e nos meus cinco anos de idade, com quatro e até com três, sempre andei comigo mesmo por sítios que era impossível imaginar…
Sentia proteção de algo que me guardava como anjo de asa.

Não sei se era da minha tenra idade ou da inocência da alma, eu tinha uma vontade para além dos olhos da humanidade, que me faziam caminhar ao encontro de lugares misteriosos e mundos naquele flanco, como esse pinhal.
Tudo me parecia normal, não sendo não era natural… mas eu gostava de ouvir as árvores falar, por isso, entrei… um portãozinho à medida do meu corpo, com a lista do coração e que nunca dera entrada a ninguém, nem presença de existir. 
Aquele lugar já não era um pinhal.


Olhei antes de entrar, para me situar da entrada daquele caminho, entre a minha casa e o interior daquela terra firme, ainda não explorada…
Então embrenhei-me floresta adentro com pouca claridade, raios de sol por entre as folhas, borboletas a esvoaçar reluzindo luz nos meus passos.
E então as árvores continuaram a falar…
Os ramos a dançar e as folhas brincavam ao vento e eu contente com tanta alegria, corria atrás das folhas que voavam, os galhos que me abraçavam rodeado de feixes de flores, os troncos que me transportavam com mil cuidados para não cair… e se aquilo era a beleza, o paraíso, o além do bosque… eu gostava do sítio, era tão divertido. 
E sempre que ali passava, ouvia as árvores falar…
Estavam a chamar uma voz que compreendiam.

Ali existia a eternidade, a perfeição, não havia o morrer nem a mudança de outra árvore, o cair da folha, o raiar de novo dia, mas precisavam de outra árvore para falar… para copiarem os sons da vida, criar ao nascer e sorrir no sonhar para haver mudança na criação, e o tempo não ficar parado. 












/NA MEALHADA/







LEITÃO







Casa na estrada, estrada nas casas...
Aqui, também morava na via pública, tal e qual a rua de um bairro com casas do lado e outro lado das casas, com uma pequena relva entre elas, e o movimento de carros e motas…
Algumas camionetas não ofereciam perigo, havia o jardim… e a rua era larga dos lados, embora um pouco tortas.
Havia o restaurante do mesmo lado, quando escapava de casa e seguia os carreiros do relvado, ia ver o dono à tardinha, cá fora, assar no espeto o leitãozinho de leite, rodando devagarinho o bichinho com todos os condimentos… besuntado de molhos até ficar tostadinho, deixando o gosto tremendo, do crescer água na boca.
Era muito amigo de meu pai, todos os fins-de-semana lhe dava um bom pedaço de leitão, e à mesa nunca comi coisa tão boa, tão gostosa, com todos os paladares do céu e da Terra, o verdadeiro manjar dos “Neves”, a companhia na família dos leitões.










/ EM CASTELO DE PAIVA/

XXXVI

ALMOÇO NA SERRA





Num dos dias na Serra da Freita, para os lados de Castelo de Paiva, acompanhei meu pai na montagem de uma linha, era difícil e perigosa a subida, e a profissão de guarda-fios os heróis daquele dia, numa altura que fazia tremer o interior de qualquer coração. 
O dia continuou, e chegando a hora do almoço, com lenha apanhada no monte, pau grosso, se fez uma bela fogueira, e numa panela preta de ferro ferreira, se fez o melhor cozido da minha vida na Terra. Comeram várias pessoas, e se não era dos ares da serra, era da panela que ainda serviu para além das carnes de porco, boas sopas…

Um dos ajudantes do motorista (meu pai), lhe deu a vontade, e atrás de umas silvas se foi aliviar. E pegando numa pedra parideira para se tentar limpar, eis que manda um grito que fez assustar a serra inteira… 
Meu pai teve de o conduzir ao hospital, porque um lacrau que estava debaixo da pedra de granito lhe fez um “pico”, mesmo no centro do refugo… e o coitado não parava com tanta dor no cujo…

Ele bem sabe que a culpa não foi do cozido, nem do belo apetite, nem sequer do alívio… mas sim da falta de papel e daquela pedra que tinha um doloroso espinho.

Dissera ele mais tarde:
- Maldita a hora que lhe dera ali a vontade de repente!
Estivera quase a fazê-lo de um penhasco… mas como era muito o frio do vento, receou ficar constipado.
Às pedras nunca mais vai voltar, e muito menos as calças arriar… porque isto de ser picado, ninguém gosta, e muito menos naquelas partes onde ninguém se pode descuidar.

Nunca gostei tanto de sorrir ao comer boa comida, e deitar mão à barriga como uma criança de pião, perdida de tanto rir com o pico do escorpião.







/Em Alferrarede/

XXXVII


ALFERRAREDE




Em plenas férias grandes… subia e descia aquela rua sem saída. Não era muito inclinada quem vinha da rua principal, era atravessada naquela direção… pela estrada de alcatrão.
Subia e descia aquela rua passando pela porta de minha casa. Sem saída tornava-se isolada. Passava ali as minhas tardes.
Brincava com uma miúda dessas idades, namorando com a inocência do olhar, correspondido na maneira meiga de falar.
E quando estava sozinho… sentado nas escadinhas do meu cubículo, olhava as estrelas, esses pequeninos emergentes pontinhos embrenhando meu delírio noturno. 
Passava um meteorito do outro lado da Terra e eu sonhava que era uma fada que vinha doutro mundo e me levava, voando junto com ela.
Esvoaçava, e eu sonhava olhar perdido, apenas um… à porta e à janela…  ali ficava perdido sem jeito nenhum.











EM LISBOA/MARVILA

EXAME DA 4ª CLASSE
EM XABREGAS
 


 DE MARVILA PARA TOMAR










Cinco anos passados como interno no Colégio Nun'Álvares
na cidade de Tomar com 11 anos de idade até aos 16.



COLÉGIO INTERNO
NUN’ÁLVARES DE TOMAR




Se transformarmos cinco anos em 60 meses, 1825 dias, 43 mil e 800 horas, 2 milhões e 628 mil minutos, 157 milhões e 680 mil segundos… o nosso tempo tem milhões e embora dele faça parte o milésimo, ocorrem milhentas coisas no segundo do mundo.
Cerca de mil alunos… era um mar de espécies e raças vividos com o contacto do dia-a-dia, experiências, histórias, vidas de África e outras ilhas, uma humanidade tão rica e diversificada dentro de uma prisão planetária, com a finalidade de aprenderem a ser homenzinhos num mundo melhor e se tornarem livres.
Mas como era isso possível na atualidade, se no tempo era ditadura, não havia liberdade e o futuro era um facho, uma mão no alto e uma falsa pintura… nunca me adaptei, e saudade é coisa que não sei, nem tão pouco repetir se voltasse atrás, renovar a idade, ninguém me convence, mesmo que prometessem que eu ia viver em paz, e voltaria a liberdade de quem sente, como Fernão Mentes Minto.







NO RECREIO







Um cantinho… um encanto de lugar, um agasalho do vento não menos que um abrigo, um retiro com olhar para o céu, o cantinho do nosso refúgio…
As recordações…
Por ser o nosso convento, esconderijo das nossas memórias, das saudades do nosso tempo, das tristezas e alegrias… o cantinho do nosso lugar.
Por ser a proteção dos nossos pensamentos, sem leis que nos prendam ou impeçam de sonhar, por ser um cantinho tão pequeno onde cabem todas as estrelas e água do mar.
Porque não somos fugitivos de nada, precisamos do nosso espaço, pensar nos dias que passam, recolher ao nosso mundo para nos sentirmos livres como o oceano e a Terra no ar.








A ESPERA





 Alguém sabe o que é sair de casa com 11 primaveras para ir estudar num colégio interno, vivendo mil esperas, ficar enclausurado durante outros cinco anos, viver numa prisão que é o inferno? 
Vivemos o tempo como se fora dos moiros fechados num castelo, alimentados com arroz e porrada… tendo a espada como martelo e a dureza de ser caloiro, andando com uma coroa e os espinhos de um judas mal-amado.
Ficamos por nossa conta… sobreviver à sombra de quem é mais forte, sonhamos vir embora a toda a hora à espera de uma qualquer sorte, que nos batam à porta… caramba! Como uma espécie de lotaria sem engano, noite e dia durante a semana, todo o ano. 
Somos possuídos de uma tal coragem que nós próprios ficamos admirados com tanto sangue frio, uma revolta interior que parece adormecida… produto da violência que nos moldou, um coração gélido e duro mas não insensível, se a parte intocável que há dentro de nós não se quebrar…
Espero a hora do recreio, o fim da aula, a hora de jantar, horas incontáveis, esperas intermináveis, a hora de dormir, sonhar… acordar em casa.











 


XLI




Colégio Nun'Álvares em Tomar/




Aos 11 anos de idade, no Colégio de Tomar, ouvia os risos que enchiam o pátio de recreio e sofria dessa dor sem nome de sentir a vida muito mais cedo do que os outros sentem.
É certo que lutava para compreender o menino triste, insensível à agitação em torno. Sabia que tinha medo do rumor que ouvia, mas também tinha medo do silêncio que devora.
As árvores dormiam como ilhas perdidas na sombra, e os minutos a passar como asas lançadas no espaço febril da minha insónia.
A solidão acorda tão fundo em meu espírito, que a certeza do vazio que demora, preenchida traz minha tristeza, e logo vem ao meu pensamento que minha liberdade está perdida.















DE TOMAR PARA
VILA NOVA DE FOZ CÔA



E então… depois de cinco anos atribulados passados no Colégio, na altura com 16 anos de idade, fui viver para Trás-os-Montes em Vila Nova Foz Côa (hoje cidade), onde o meu pai se encontrava na montagem de linhas.
Aqui passei dois anos, frequentando o 9º e 10º anos, estalando na altura a Revolução do 25 de Abril com o fim da ditadura.





CHEGADO ÀS ORIGENS
     






Lá dos lados de Trás-os-Montes… será que o sol de outrora nasce todos os dias? Dentre as montanhas que protegem esta Foz, donde passa o Côa?
Será que foi o ninho das antigas origens, do elixir da longa vida, viajante das fórmulas do tempo, das raízes mágicas mescladas de espíritos ancestrais, nossos antepassados?
Algo me diz que sim… viandante alma de mim.





VILA NOVA DE FOZ CÔA




Esta chegada aos 16 anos seria uma partida
reencontro por intervalos de vida,
encontro da minha chegada,
sítio…
reencontros da minha alma mais apaixonada,
o meu caminho.






ENCONTREI O TEU CAMINHO





Encontrei o teu caminho…
Seguindo o asfalto negro por entre nuvens espessas, senti a cumplicidade da terra como se fora nascido dela… noutras direções apaixonadas, cruzei-me com a lenda das sombras, passei muralhas de castelos, fiz o sinal da cruz ao passar igrejas em recônditos lugares, senti calafrios ao ver montes e vales rodeados de montanhas, algo familiar nada estranho às entranhas de mim no teu lugar.

Encontrei o teu caminho…
Eras tu que eu queria no meu sentimento mais puro, como um mistério belo e profundo de encantos fascinantes, cheio de amêndoas em flor, além do horizonte luzente.
Por isso te amo, como outro algures nenhum existido, ventre terra pó da minha vida.

Encontrei o teu caminho…
A tua escuridão me fazia parar junto da mulher que passava, mas o cheiro da terra dos montes e o orvalho perfumado, logo me fazia continuar na minha estrada à procura do teu coração conquistado. 
Outro encontro seria a razão do teu amor.

 
Encontrei o teu caminho…
Sozinho como uma estrela, no meio de nenhures na direção do nosso sistema quente e alaranjado, encontrei o teu caminho, porque era vontade minha encontrar-te seguindo a tua sorte.
Sabia que a tua existência encontrou o meu caminho, e desconhecia se eras uma rosa ou uma nascente, uma lua cheia de luz, uma melodia, uma imagem e um silêncio numa ilusão…

Encontrei o teu caminho...
Sabia que fazias parte de mim, que sempre estivemos juntos, fazias parte de meu sonho, tinhas lugar no universo como uma estrela sozinha, única no mundo…
No palpitar, o sentir do coração ao olhar para o mar, recordar a razão de eu existir, viver no fundo do meu oceano por não te poder amar, as saudades do teu lugar vivido na ausência ao encontro do teu caminho.


Espera por mim.
Quero ir ao teu encontro, poder abraçar a terra que irá colher em seus braços meu corpo.
Não tenho hora marcada, mas meu destino é certo, vagueando meu espírito por vales e montes, encontrando teu caminho como um jazigo do céu sem contagem do tempo.













 



SORRISOS
/Em Vila Nova de Foz Côa /


Rodeavam sorrisos de lábios afilados e meios descarnados, outros grossos de sangue encarnados como pétalas bordados e viçosos, semeando abraços de contornos apertados, juntos ao peito de ternos impulsos que um dia se haviam acabado… 

Substituindo o riso do povo, pela cascata de água em queda livre num mero ímpeto de saltar o morro aquando da minha saída… não quero lembrar esse dia angustiante... beiços de sorrisos que eu recordo com saudades, onde não vejo em mais nenhum lado do planeta, misturados em flores agrestes ou vales de amêndoa florida alva sem idades, da mulher de vestidos preto na originalidade da terra, ou o homem transmontano de várias classes que vem da serra… sorrisos que me vão na alma, como colheres de mel tonificando minha calma, no silêncio do meu sentir, que me dão vida para continuar minha caminhada e sorrir… sorrisos dos meus sentidos, da paixão gravados e impressos como cachos de uva tinta, substituindo o sangue… colheita da minha vida, quase extinta.

Não importa se as estações do ano mudam, se o século vira e se o milénio é outro, se dificuldades surgem, se a idade avança; em lugar algum se chega sem conservar a vontade de viver... eu amo estas gentes do Côa, e um dia quero ficar por lá adormecendo entre o sorriso deles...






 







/Vila Nova de Foz Côa, verão do ano de 1974, depois da Revolução do 25 de Abril. /


Fui tomar banho na Ribeira com meus amigos da escola, e ao tentar atravessar para outra margem do Rio, me deu uma cãibra e fui ao fundo e me afoguei. Quando acordei me disseram que fui salvo por um moço que ali passara na Vila de Foz Côa (hoje cidade) e que nunca cheguei a conhecer. Coisa estranha... por isso deixo estas palavras em memorias desse tempo.







MORRER CORPO, VIVER NO OLHAR
NASCER OUTRO



I

Tentei mexer os pés, sacudindo as pernas, sentir os dedos como clichés aliviando os músculos sem sequelas, mas era impossível continuar ficando à tona da água a respirar… ainda tentei dar aos braços, mas uma cãibra e a corrente com seus tentáculos… parecia um polvo gigante com suas garras de peixe musgoso, arrastando-me para baixo como uma âncora de peso tortuoso, esgotando o tempo de respirar, alienando o cérebro… sonhador quanto baste, expulsando os bofes dos pulmões como um traste. Ao deslizar para o fundo do rio… vi-me a mim ir de olhos despertos, soltando bolhas de ar fino, antevendo no meu sonho antecipadamente inquieto o sonhar do meu afogamento…
… e paraísos de mil e um pensamentos repassaram do meu passado, mostrando imagens de vindouro transato, fugazes dentre asas voadoras no interior duma bola de cristal, passando como um condor num raio futuro.


II


Ainda hoje penso que sonhei tanta realidade, e ao acordar do devaneio minha alma reencarnou… não sei se era realidade ou ficção, a ribeira corria livre, mas sentia-me cativo como um sonâmbulo…
Ao desaparecer daquele lugar na minha inconsciência, senti-me calmo numa paz que não existia. Por um lado, os seres sem sorrisos eram diferentes, estranhamente desconhecidos, ou tudo aquilo não existia; noutro quadro temporal eram todos amigos… sentados a conversar, como se o meu afogamento fosse a coisa mais natural naquela tarde. Que estranha forma de estar… apenas os olhares pareciam disfarçadamente indiferentes, embora naquela encosta de céu cinzento, tudo apontasse para ser um dia bem negro, de sol e nuvens num clima inexistente.
Um novo recomeço estaria em curso, sabiam daquela outra vida?
Ou aliviados por eu e eles estar de frente num olhar mudo, aliviados por de novo estar palpitante com tanta vontade de ressuscitar ou seria eu apenas espírito? 
Estava rodeado de amigos e namorada do liceu que ali foram tomar banho na ribeira em Agosto, mas a maneira como se comportavam pareciam coexistir noutra dimensão… como se minha alma tivesse duas vidas, uma que ficara no Côa para sempre e outra que retomava o caminho de regresso como se nada houvera acontecido. Nos dois revezes da moeda sentia-me um predestinado para qualquer desígnio que um dia se iria revelar, e o meu afogamento não teria sido obra do acaso porque o meu corpo fôra reclamado nas entranhas daquele Rio como se ali pertencera sempre a minha alma. A próxima vez sei que não morrerei de alucinação… e a sepultura não será uma ilusão, quando meu segundo espírito sair deste mesmo corpo embalsamado, e descansar num palmo de chão depois de cumprir minha missão ainda desconhecida nas terras provenientes do passado.


III


Que seres eram aqueles olhos de mistérios silenciosos, e a dor no peito… porque falaram do peregrino francês, buscar-me ao fundo do leito uma única vez?
Porque acordei sozinho na outra margem do rio a sonhar, ao sentir asas dentro do olhar, um vento fresco no rosto, que se esvaeceu de repente em Agosto… e a dor no peito que voltava sempre que o coração batia sem jeito?
Seria um anjo… que nome daria a um invisível asas de olhar manso?
Sonhei que em tempos fui um ser alado, de majestosa aparência, muito antes de se inventar o humano criado; a minha real descendência tinha como poder o fogo do dragão, que meus olhos brotavam como chispas de carvão, contra os inimigos de Deus, os demos belzebus e danados ateus.
Havia um olhar de uma criatura veloz que me amava como a vida e a morte juntos num só, possuída duma tal fragrância amorosa com olhos de arcanjo mágico protetor, dentro de mim fixados na órbita, recordando gomos firmes de amar eterno…
A narração do Romeu e Julieta é um simples conto sem fama, duma história passada no planeta, ultrapassada e sem chama, comparada ao meu tempo de boreal aurora…









IV


Aquele romeiro invisível… foi sempre um estranho na vila, porque quem era ninguém sabia… e sempre que alguém ali passava de novo, o inventar daquele francês, de quem não era sapiente o povo, iam dizer o quê?
Então quem era, quem foi que me salvara o corpo?
Alguém com o rigor da ciência de um morto, que do fundo das águas me tirou do lodo, com uma precisão de eternos conhecimentos, como o sábio protetor, guardando com fervor o viver do meu coração em movimento. Debruçado sobre meu corpo, alguém de forma transata, humana, deitado vi um rosto e depois… nada. Caramba!
Aquele peregrino… e logo havia de ser francês, com tanto portuga em Portugal, naquele sítio onde tudo era português, ainda que aparecesse um chinês… não poderia ser um animal, uma estátua de cimento de Lisboa ou um homem com cornos ao vento em Foz Côa… eu que vivia ali há algum tempo, nunca vira se não gente de momento, a não ser Transmontanos… raios partam o francês! 



V


Com tanto mês nos anos… só queria saber quem era ele outra vez… gostava de o conhecer, ter a certeza que os ossos eram revestidos de carne, poder agradecer, encontrá-lo em qualquer parte, acreditar que aquele ser tinha alma e não passava como passará a ser para sempre… um fantasma.
Sou o mesmo corpo, mas de alma diferente… ou a mesma mente e desigual tronco numa renovada corporação, sem que se meneie o olhar do coração. Que quantidade de espíritos tenho eu?
Se é só este que sobeja indiferente, então estou pronto meu Deus… ou viverei outras existências como um bronco, na sombra dum Golias, sem um pingo de sangue num ser imorredouro, quem serei eu noutras vidas?

Um vampiro que suga o sangue das suas vítimas?
Um mafarrico de tridente e rabo de diabo…
Um Frankenstein formado às tiras…
Ou um Cristo numa cruz pregado?






VI


Melhor seria ser eu, assim não sou mais nada mesmo, para além do ser dentro de mim, o fora aquele que também queria ser… e o nada eu da minha sombra.
Que caminhos ainda me quedam, que lugar me está reservado?
Sejam eles quais forem… que me restam, espero ter uma cruz onde possa repousar descansado, como um súbito alado de asas que não prestam, e consiga ficar deitado em paz,  donde estar, não ir no voltar novamente… e adormecer minhas cinzas no leito das ondas do mar.
É de lá que brota toda a matéria, e é para lá o meu testemunho a quem eu quero retornar, porque se Deus quiser que eu volte... ainda que seja noutro corpo, tudo o que eu sou será mais perfeito através dos séculos.

Não escondo o desejo de ser um anjo na Terra com a missão Divina de cuidar, aperfeiçoando toda a raça que deixe de ser mortal para amar toda a vida humana.
 
Vive-se onde o sangue tem o cheiro da terra, perfume da vida eterno que me chama e me quer no seu leito.
Ao pensar… sou dali, quero voltar, e dali partir, deixei lá minha alma ao vento, mas quero ir com calma ao encontro do meu destino… tenho o tempo todo do Mundo.
























DAR E RECEBER


Vila Nova de Foz Côa

 




 
Nunca na minha vida tive tantos amigos queridos de Trás-os-Montes, e vi tão colossal desejo de viver, partilhar o meu interior, bombear o meu coração, distribuir amor, dar e receber, extinto sofrer de quem sabe amar. 
Quando sentimos na adolescência o despertar das atenções, que somos o amor centrado do sexo oposto contados pelos dedos da mão, que deixamos paixões por onde passamos, sentimos essas pessoas no coração. Embora sejam uma pequena vila no nosso mundo, elas são para sempre o infinito Universo de mim em tudo. 
Temos o coração quente inundado de calor, derretemos nuvens com nossos passos caminhantes de amor, voamos como angelicais seres da paz, transmitimos deslumbrantes sabores do sentimento voraz; caminhamos espalhando abraços e beijos de chocolate quente, saboreados como cacau doce que nos vão pedindo, apenas com a carícia do olhar. 
Somos abençoados, por termos a sorte de sermos amados apenas nas palavras e no contacto espiritualmente, onde nossos corpos se fundem na procura da eternidade em laços de amizade pura e áurea consistente, em sinal dos tempos que hão-de vir, não saber de tormentos, banir pensamentos… arrancar, permanecer entrelaçados viventes amantes de apaixonados paraísos - por saberem amar.















A BUSCA DA ETERNIDADE


/EM SANTARÉM/



"Sentindo o vermelho viscoso queimado, um calor no corpo todo, foi como se tivesse atirado, deitado a alma fora no ar solto. Caí em cima da cama, adormeci num ápice tal e qual, perdi os sentidos e vi uma iguana…  senti uma chama como fogo devorando meu espírito, voltando à minha posição fetal, todo encolhido, sob o olhar do camaleão... lambendo minha mão.

Sonhando, ou vivi, dei de caras com a minha personagem, com o rosto de mim. Estava ali à minha frente na imagem…e então vi… éramos dois iguaizinhos a um, se tirasse o real por entre o sonho, ficava a realidade a sonhar e um de nós não via outro nenhum, a não ser fantasia no olhar sem rosto clivado como um ombro, com olheiras negras… de meter medo ao espelho das incertezas – um monstro.

Viajando dentro do corpo, o sangue correndo de artérias viscoso assisti quase morto à seiva subindo e descendo naqueles vasos esponjosos, de tanto encarnado porosos inundando toda existente ramificação, pulando vivo cem por cento no ribombar ensurdecedor do coração batendo na sombra… como o tambor da bateria no som “baixo” nada “grave” e violento, como uma bomba.


Viajando fora do corpo, elevando minha alma lá no alto, via-me deitado na companhia de mais corpos, todos cheios de estrelícias dourados, da família dos musáceos como cachos soltos.

Meu espírito observando também sonhava, estava sob efeito na forma de anestesia, e nunca pensou que algum dia sua espiritualidade se embriagava, mesmo apartado da matéria viva.
Vivi sonhando, morri vivendo de vez em quando…

«««


Acordei pensando no sofrimento voltando aos meus sonhos vivendo. Vivo o anormal, e não consigo estar acordado se fujo do que não gosto… o mundo é demasiado evidente, tosco e pachorrento.

Quero dormir o sono eterno da saudade, tudo o que eu vivi quando fui amado.

Sonho que estou a ser embalado pela espuma doce do mar, morro nascendo no passado insano…
Com o sangue fervendo - não quero acordar, mas o choque da fatalidade que me cerca, e o que sendo não sou, é uma verdade insofismável, e desperto como um amofinado da morfina para voltar desinteressadamente à minha forma rotineira... 



O que me mantém vivo nem eu sei porquê, senão a espera contínua do desconhecido aventureiro suicida. A minha salvação se é que ela existe, reside apenas num princípio comum e banal - ser compreendido. Parece ridícula esta palavra como ridícula é a minha vida aos dezanove anos, depois de sair da terra e das pessoas que mais amei, substituídas por outras que possuí e deitei fora sem me aperceber da indiferença do meu acto.



A mudança que eu tanto anseio, a compreensão que espero de Deus, será o descanso da minha alma junto dos seres que se encontram no abraço da sua eternidade... o desejo e o encontro onde reside a minha felicidade.


















RITUAL

/EM SANTARÉM/


Por vezes, sentia-me dividido, partes confusas, tudo andava depressa no meu espaço, as horas do dia eram escassas e as da noite diminutas, insensatas, para o ritmo que levava.
Pisava o chão como se estivesse minado de agulhas, nunca fui capaz de permanecer na duração do sítio inventado… e as horas passavam nos segundos, como a máquina do tempo à volta do mundo… eu não tinha paz no minuto, e os anos da juventude eram sempre frescos, irresistíveis para quem se aproximasse, rostos que eu amava com a entrega do ser, passavam como o vento, não davam descanso para ver a idade. Um dia seriam a desgraça, quando quisesse parar… onde devia estar e a quem tinha feito a promessa de encontrar a verdade no amor.
O sol era o meu relógio e a lua o esquecimento dos bafos quentes, dos panos amarrotados no chão da cama, dos gemidos profundos em intermináveis paredes desconhecidas, dos corpos reunidos em braços e pernas encolhidos, das vozes que faziam promessas sem sentido, na podridão do sentimento vivido depressa. Não tinha pressa de viver, mas momentos vividos valiam uma vida sem nada ter pedido, não tinha hora de chegada nem de partida, andava um pouco à revelia da liberdade, sem sentido, meus passos não tinham contrato efetivo, era abstrato e desconhecido e o mundo demasiado fácil, e a minha vontade fraca no querer parar, e forte no dominar.
















/ANO DE 1977 - PORTO ALTO/



SUBESTAÇÃO DO PORTO ALTO
BAIRRO DA EDP



L




Cheguei a este Bairro, vindo de Santarém, e apesar de ser uma mini aldeia com jardins, árvores de fruto e nove famílias… um mini paraíso naquele silencioso Verão de Agosto… o vazio angustiante que já existia originário algures na partida de Foz Côa, nesse dia dessa nova chegada, senti dentro de mim esse espectro que eram aquelas montanhas e amendoeiras floridas, o leito do rio Côa, cama eterna da minha alma, e o perfume da terra que tantas vezes deixei cair por entre os dedos, sentindo-a na pele como o sal da vida, que dava existência aos batimentos do meu coração. 

Cada chegada é o novo começo de uma nova partida, o sentimento de uma nova paixão, a saudade no olhar de um novo apartar, amar com a mesma vontade as ondas do mar em cultos do amor em prazeres sem fim, porque a chegada e a partida são os lugares da minha terra, é a minha vida.
E eu continuava a viver de recordações, de pesadelos no sono, de paragens existenciais vivendo e morrendo vezes sem conta…


E eu vivo porque tenho a esperança de um dia regressar à minha casa em forma de cruz e soltar meu corpo pregado naquelas tábuas, acabar com as saudades ao voltar à terra onde estão as gentes do presente e as vozes dos que já são passado, poder falar em silêncio com as almas e recordar com os vivos o amor que nunca nos tem abandonado, e poder gritar a Deus que nesse dia estarei em paz e preparado para partir, que me encontro no lugar donde nunca devia ter saído.



*



Eram dez famílias e os mais novos eram levados na carrinha para o liceu de Vila Franca de Xira e as senhoras iam às compras conduzidas pelo meu pai que era o motorista.
Todos os funcionários tinham lá casa, uma horta com cebolas, batatas, alhos, alfaces, morangos, couves, uvas, etc, todo o ano, e um recinto para criação de frangos, patos, coelhos, pombos, uma cantina com bens essenciais, um bar, uma sala de jogos (ping-pong, matraquilhos, damas, xadrez, cartas etc), e ainda uma biblioteca e uma piscina. Dentro do próprio bairro tinha dezenas de laranjeiras (baía), limoeiros, maçãs reinetas, e um damasqueiro gigante.
















L

ACREDITE EM QUEM QUISER
VER E OUVIR SE SOUBER



Baixa da Banheira, verão do ano 1980.




 
 “O que mantemos oculto é responsável por atrair os outros até nós”



Hospedado na Baixa da Banheira, morava num 1º andar, onde todos os dias da semana me dirigia de comboio para trabalhar no Estaleiro da Subestação de Palmela como escriturário-datilografo. Ao fim de semana vinha a casa (bairro da EDP da Subestação de Porto Alto) apenas para fazer as mudas roupa, e dirigia-me para a casa da minha avó Quitas em Marvila – Lisboa, onde passava os sábados e domingos. Foi assim durante três anos maravilhosos, de muita diversão e aprendizagem como ocupar os meus tempos livres trabalhando no teatro na calçada Duque Lafões em Lisboa.






Antes de começar a contar esta história verídica, sei que essas pessoas são especiais porque curam outras, absorvendo os espíritos que causam esses males. E eu, que vivia e dormia ao lado dessa senhora médium, conseguia ver esses mesmos espíritos esvoaçando por cima da minha cabeça, e até o próprio espírito da senhora.

Contei no dia seguinte à médium, e ela mandou-me sentar e fez umas rezas com os dedos na minha cabeça, porque segundo ela eu tinha um dom de os atrair e ver, e quando me sentia mal por querem entrar dentro de mim. Apenas posso dizer que nunca mais fui apoquentado, mas constatava que a médium não se sentia bem ao pé de mim, e eu também não; algumas vezes tinha de me sentar se não caía no chão.
Ela sabia algo sobre mim que temia, mas nunca me quis revelar.
A verdade é que eu tinha esse algo desde muito pequenino, e alguns textos descrevo com algumas histórias estes factos e outros.
Todos nós temos um anjo da guarda. Mesmo depois desta capa que é o nosso corpo, ele irá continuar eternamente ao lado do nosso espírito se for essa sucessão do divino.
O meu próprio anjo da guarda me salvou da morte várias vezes, porque quando era inocente e pequeno ele me deixava senti-lo com a sua presença.
Sei também que é muito difícil as pessoas acreditarem, a não ser as criaturas que olham para mim mais como uma maldição do que como um deles.
Nunca tentei perceber porquê, mas partilho estas palavras mais para fazer a quem quiser ver que há muitas coisas estranhas nestes mundos.

*

Dormia num quartinho, tapado apenas por uma cortina branca transparente que dava para a sala de estar e não tinha porta.
A única porta, ficava ao meio do recinto a cinco metros da minha cama e dava para a varanda, iluminada por um candeeiro de rua. 
Naquelas noites de verão, bem quentes, era costume deitar-me às duas horas da madrugada. 

O calor era muito e o andar muito quente. 

Subi as escadas, abri a porta sem fazer barulho, e no corredor passei pelo quarto da senhoria que dormia.

Ao deitar-me, tapado com um lençol branco, virei-me para o meu lado direito e quando me preparava para adormecer – ouvi uns murmúrios esquisitos por cima de meu rosto, e ao mesmo tempo indescritíveis, porque não os consigo descrever com exatidão por palavras. 
Só ouvindo e vendo como eu presenciei naquela noite, sente-se sem saber como, que estamos perante um mundo dentro de outro mundo, que há vida para além de outras vidas, que há um lugar melhor e outros piores - bem negros.

Olhei para o alto, e dezenas de vultos fantasmagóricos todos de negro, esvoaçavam por cima de minha cabeça andando às voltas uns dos outros, delgados e ondulantes como se estivessem dentro de um tecido preto, virando e revirando de direção com uns olhitos esquisitos, única prova do que parecia ser humano errantes de um andar perdidos, tal e qual como se imita o terror.


Não se calavam… e se aquilo era falar, tinha qualquer coisa de sinistro, pareciam murmúrios em tom de protesto, mas não entendi nada. 
Que arrepio… mesmo que falassem um de cada vez, com o susto que eu estava, parecia-me diferente das chinesices… e se vozes não eram, além… eram sílabas com espinhos e silvas, esquisitices… perplexo com o que se estava a passar, belisquei-me. 
Estava mesmo acordado. 
Ao olhar para a sala, vi também toda de preto, sentada de frente, olhando para mim, um corpo forte e um rosto vazio… sem olhos, uma cavidade profunda, a boca do inferno… talvez, donde saíam por certo aqueles espíritos inquietos.
Era exatamente os contornos e a figura da senhora (médium) que dormia num quarto ao lado do corredor. 

Fiquei ainda mais arrepiado, e acho, que naquele momento me podia ter caído qualquer coisa ao chão da cama, se não estivesse pendurado o meu medo interior…
Tapei-me com o lençol e adormeci lá não sei quando... com um zumbido no ouvido, tal e qual um barulho dum inseto vivo rondando, maior que um gigante moscardo negro, menor que o espírito preto.





 



FIM